Autor: Sérgio Soares Braga,professor de Ciência Politica da Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Resenha publicada na Revista Critica Marxista 44, 2017.

Na cultura política da esquerda marxista brasileira desse início de século XXI a memória de algumas personalidades revolucionárias ocupa lugar de destaque. Mencionemos os casos de militantes como Carlos Marighela, Apolônio de Carvalho, Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Lamarca e outros combatentes, os quais tiveram suas vidas estudadas e narradas em trabalhos acadêmicos, livros, filmes e mesmo séries de televisão. Entretanto, ao lado desses revolucionários mais presentes no imaginário das esquerdas e do público em geral, existe uma ampla massa de militantes cujas ações, embora de menor visibilidade aos olhos do público, nem por isso deixaram de ter importância semelhante ou equivalente àquelas empreendidas por estas lideranças políticas mais conhecidas.

As Comissões da Verdade que funcionaram no Brasil entre 2012 e 2015 reconstituíram a história de muitos desses combatentes menos notórios, que também dedicaram suas vidas ao trabalho organizativo das classes trabalhadoras e à luta por uma sociedade mais justa. No entanto, mesmo com os avanços propiciados pelos trabalhos dessas comissões, muito esforço de pesquisa ainda resta por ser feito para analisar a trajetória dessa ampla massa de militantes cujas ações foram de fundamental importância na história da esquerda marxista no Brasil, bem como tirar as lições políticas dessa análise.

É nesse contexto que pode ser melhor compreendido o trabalho biográfico de Geraldo de Majella intitulado Jayme Miranda: um revolucionário brasileiro (Editora Bagaço, 2015), onde o autor busca resgatar a memória e fornecer uma breve introdução à compreensão da vida de um importante dirigente comunista que, tendo iniciado sua militância num pequeno estado semi-feudal do nordeste brasileiro, veio a ocupar cargos de destaque na hierarquia do antigo PCB (Partido Comunista Brasileiro) a partir da década de 1950 até ser assassinado sob tortura nas masmorras da ditadura militar em meados da década de 1970. Nascido na década de 1920 numa família pequeno-burguesa e atuante no ramo hoteleiro em Maceió-AL, Jayme Miranda foi um dos muitos jovens nordestinos a se politizar sob o efeito conjugado da vitória dos aliados sobre o nazi-fascismo na segunda guerra mundial e do forte poder de atração que o sistema social vigente na antiga União Soviética exercia sobre a juventude politizada de então. O acesso ao curso superior (formou-se em Direito pela UFAL em 1951), o exercício de atividades intelectuais contínuas em empresas jornalísticas (trabalhou como revisor e repórter em jornais do grupo

Diários Associados durante a guerra), a formação militar (frequentou curso de formação de sargentos no Rio e em São Paulo) e, especialmente, a convivência com organizações operárias dos bairros pobres de Maceió, singularizaram sua trajetória em comparação com outros jovens comunistas de seu estado.

Esta somatória de atributos pessoais (boa formação intelectual, talento organizativo, relativo preparo militar, convivência prática com organizações populares, circulação por diversos ambientes sociais e a consequente ausência de sectarismo político) também fizeram com que Jayme Miranda, mesmo vindo de um dos estados mais pobres e atrasados do país, tivesse uma rápida ascensão na hierarquia interna do PCB em nível nacional, desempenhando inúmeras missões e tarefas de importância, embora sem ocupar cargos que lhe dessem visibilidade aos olhos do grande público e da grande massa da militância partidária. Assim, a partir da década de 1950 Jayme ocupa vários cargos na direção do partido comunista, sendo responsável pela redação do jornal Voz do Povo em Alagoas, membro da direção estadual do PCB, frequentando ainda diversos cursos de formação política no Brasil e em países do Leste Europeu. Exatamente por esses motivos, sofreu várias prisões e perseguições políticas por parte das classes dominantes de seu estado e de seus esbirros, perseguições estas que são narradas de maneira sintética por Majella no livro.

O final dos anos 50 e o início dos anos 60 é o período mais rico de sua militância, tendo participado ativamente da organização das Ligas Camponesas nos estados de Alagoas e Pernambuco, um aspecto da atuação de Jayme que poderia ter sido melhor explorado e aprofundado por Majella em sua biografia. Com efeito, em artigo de homenagem ao falecimento da viúva de Francisco Julião, Alexina Crespo, publicado em dezembro de 2013, outro histórico dirigente comunista falecido em março de 2016, Clodomir de Morais, chega a afirmar que, juntamente com Jayme Miranda e outros membros do comitê estadual de Pernambuco, estabeleceram “o caráter leninista de que carecia a organização de massas [as Ligas Camponesas -- SSB] criada por Zezé da Galileia, José dos Prazeres e pelo padre português Alípio de Freitas”. Este trabalho organizativo clandestino de Jayme Miranda nas Ligas Camponesas, que inclusive levou-o a encontrar-se pessoalmente com Mao Tsé-Tung e outros dirigentes chineses em Pequim, como é documentado pelo acervo fotográfico incluído no livro, é um dos aspectos mais destacados de sua trajetória e poderia ser melhor detalhado pelo biógrafo. De qualquer modo, a radicalização populista das classes médias urbanas de início dos anos 60 e a subsequente deflagração do golpe de 1964 vieram a jogar por terra o meticuloso e sistemático trabalho

preparatório de organização dos camponeses nordestinos dirigido por Jayme Miranda e seus companheiros, ao precipitar o confronto com a direita sem que as organizações campesinas tivessem acumulado forças e experiência política suficientes para resistir ao seu aniquilamento pelas classes dominantes. Sabe-se que as Ligas Camponesas estiveram entre as principais vítimas do golpe de 1964, sendo duramente reprimidas pelas oligarquias feudais nordestinas (especialmente dos estados de Pernambuco, Alagoas e Paraíba) em aliança com setores do aparelho repressivo, que receavam com certo fundamento que pudesse ocorrer no nordeste brasileiro um processo de revolução popular e agrária análogo ao ocorrido em Cuba e outros países do terceiro mundo naquele período.

Após o golpe de 1964 e sua prisão em Alagoas, por medidas de segurança, Jayme Miranda concentra sua militância no sudeste brasileiro, desempenhando missões importantes na direção do PCB. Ao contrário de diversas organizações vinculadas às camadas médias urbanas e dissidências do PCB, Jayme Miranda, juntamente com outros dirigentes comunistas, opta por não aderir à luta armada contra o regime, desempenhando tarefas na organização de uma frente democrática contra a ditadura militar, estratégia que posteriormente demonstrou ser a mais adequada para a liquidação do regime. Estava no desempenho dessas funções quando veio a ser morto sob tortura nas dependências do Exército em fevereiro de 1975 no Rio de Janeiro.

O trabalho de pesquisa de Majella nos mostra que Jayme Miranda teve, até o seu assassinato pelo aparelho repressivo da ditadura militar, uma conduta exemplar que ainda hoje pode servir para a educação política de novas gerações de militantes. O gosto pelo estudo e pela formação teórica, a discrição no desempenho das tarefas e missões mais difíceis, a convivência fraterna com os trabalhadores puros e simples das periferias de Maceió e de outras cidades brasileiras, a modéstia no trato com os camaradas, a manutenção da integridade pessoal mesmo ao defender a política de alianças com setores dominantes progressistas, jamais se resignando a aceitar as benesses das classes dominantes e os privilégios do Estado burguês em troca de apoio político, são os elementos subjacentes à sua conduta durante a fase mais repressiva da ditadura e toda a sua militância. O livro de Geraldo Majella, além de resgatar a memória desse importante líder comunista do século passado, contribui para a construção de um modelo de papel do que deve ser o militante comunista nesse início de século XXI, mesmo com as ressalvas a serem feitas nos dias de hoje em relação aos objetivos finais que orientavam a conduta daquela velha geração de comunistas (vale dizer, a defesa incondicional da miragem do “socialismo real” de tipo soviético).

Palavras-chave: biografia política, militância política, Jayme Miranda, Ligas Camponesas; comunismo.

Keywords: political biography, political militancy, Jayme Miranda, Peasant Leagues; communism