Os Engenheiros do Hawaii talvez tenham sido os mais polêmicos dos anos 80 e 90. Uma banda que saiu do tom e fez provocações, por meio de suas letras, que - como mostra a biografia escrita por Alexandre Lucchese - rendeu ao grupo o apelido até injusto de banda da “direita”. Isto surgiu por conta de canções de seu primeiro disco, como Toda Forma de Poder - em que se ironizava tanto Fidel Castro quanto Pinochet - e por Fé Nenhuma, que criticava o espírito revolucionário do momento.
As críticas também se estenderam as músicas - acusando-os de serem sempre mais do mesmo - e ao estilo de Humberto Gessinger na escrita. Porém, assim como acumulou detratores, também acumulou fãs. O trio Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz foram responsáveis por uma obra sólida. Discos que passeavam pela literatura, pelo rock progressivo, por álbuns conceituais e por uma estética crua sem se importarem muito com os rótulos e até ironizando o cenário pop do qual eles mesmos faziam parte.
As polêmicas - como mostra o autor - estão ao longo da trajetória e dentro da própria banda, nas relações entre os integrantes. Infinita Highway: Uma Carona com os Engenheiros do Hawaii é uma excelente obra não só para fãs, mas também para quem aprecia uma boa história. Nesta edição, conversamos com o escritor e jornalista Alexandre Lucchese sobre a carona que ele pegou com uma banda que fez história apesar de ter nascido para durar apenas um dia. Confira.
A biografia que você escreve remonta a o período e que os Engenheiros do Hawaii eram formados por Humberto Gessinger, Carlos Maltz, Augusto Licks e, na fase inicial, Marcelo Pitz. Para muitos o período mais rico da banda. Por qual razão você se restringiu a este período e não mergulhou nas formações sequenciais dos Engenheiros, quando este passou a ser basicamente o nome fantasia da carreira musical de Humberto Gessinger?
Tentei analisar como o sentido de unidade da formação clássica se formou e se quebrou. É também essa unidade que caracteriza o livro. Com a saída de Augusto Licks, os Engenheiros tentam se refazer, mas a banda praticamente acaba. Ela só começa de novo depois que Humberto a redefine, a partir do Humberto Gessinger Trio, projeto ao qual vinha se dedicando. Mas aí tudo é diferente, tanto os personagens como as relações de trabalho. Ninguém mais divide ganhos e responsabilidades com Humberto, como anteriormente. Como você falou acima, é quase um cantor solo adaptando formações, como músicos contratados. É igualmente um período rico do ponto de vista musical, e merece ser estudado em outro livro, com mais 300 páginas.
Sua obra confirma, com detalhes e extrema riqueza, algo que muitos fãs dos Engenheiros do Hawaii já intuíam: uma banda extremamente focada na arte que elevava à condição de um ofício. Isto gerava inúmeras tensões e acabou sendo o ponto de partida para o desgaste da própria banda. Na sua visão, o que faltou aos Engenheiros do Hawaii para uma vida mais longa daquela que foi sua formação mais clássica? Ou é impossível avaliar isto e Engenheiros foi o que poderia e deveria ter sido?
Eram perfis extremamente diferentes, que estavam unidos por razões distintas. É difícil imaginar que o rompimento pudesse ser evitado. Já vi Humberto dizendo que, em vez de perguntarem por que a formação clássica acabou, as pessoas deveriam se perguntar como foi possível ter durado tanto tempo. Era uma relação tensa, que gerava também uma adrenalina boa. A tensão se transformava em catarse a cada noite no palco. Era algo exuberante, mas que os deixava exauridos.
O livro Infinita Highway aborda muito bem não apenas a banda, mas as características biográficas de seus integrantes. Um ponto interessante nisto é que o leitor encerra a obra com um sabor de "quero mais", uma vez que depois deste processo Humberto Gessinger e Carlos Maltz tiveram suas carreiras sequenciais com bandas, livros e outras produções. Você pensa em aprofundar isto futuramente? Por sinal, como você avalia os Engenheiros do Hawaii após o término do trio GLM?
No momento, não tenho planos de voltar a escrever sobre música. Mas os Engenheiros pós GL&M foram uma grande banda, e podem render um bom livro, para mim ou para qualquer outro jornalista interessado em boas histórias. Admiro muito o modo como Humberto se renovou e não tentou se repetir ao longo dos anos. Deve ter sido uma barra se reinventar aos trinta e poucos anos, sem a energia criativa juvenil que caracterizou os primeiros anos da banda. Além disso, sedimentou sua carreira em paralelo ao mainstream, construindo um modo próprio de se relacionar com os fãs. É um exemplo inspirador.
Na sua opinião, quais são os pontos mais fortes da obra dos Engenheiros do Hawaii? Por qual razão é uma banda indispensável na discografia do rock brasileiro?
A dedicação que deram às canções foi fundamental, tratando a relação entre letra e melodia de modo único. O que a torna indispensável é sua auto-ironia, a capacidade de fazer parte do mainstream sem deslumbramento, sempre questionando o meio que frequentavam. Em um momento em que era heroico posar como roqueiro, apontaram que toda aquela pose não era mais que uma variação do pop, criada para vender refrigerantes em festivais bancados por multinacionais do tabaco.
Como você avalia a relação entre a crítica música e os Engenheiros do Hawaii? Eles foram incompreendidos? Houve um ranço com a banda em função das ironias e das posições contra o mainstream? Eles foram injustiçados? Ou em alguma medida a crítica estava correta nas posições mais duras em relação à banda?
Não sou crítico musical, então não me atrevo a questionar a opinião destes profissionais. Cada um avaliava a banda segundo seus critérios, chegando a suas próprias conclusões. No entanto, a contundência de alguns críticos contra os Engenheiros algumas vezes se destaca, sendo algo realmente fora da curva. Creio que essa radicalidade se deve ao fato de ser uma banda que não se relacionava com jornalistas ou com o meio musical de seu tempo. Um crítico se sente mais à vontade para ser agressivo contra um trio com fama de arrogante e comportamento distante do que contra um grupo boa-praça com o qual vai topar no dia seguinte em alguma festa.
Em dias atuais, muitas das letras de Gessinger - se fossem escritas hoje - seriam alvo de um ataque do pensamento politicamente correto, como por exemplo, a presença do "Terceiro Sexo" em Longe Demais das Capitais, Fidel e Pinochet sendo citados em um mesmo contexto, e até mesmo a própria canção Fé Nenhuma. Veja que todas elas estão logo no primeiro disco. A banda foi extremamente corajosa ao tocar nestes pontos. É uma obra que, apesar de poder ser datada, não se deixa datar. Num exercício de imaginação, se os Engenheiros do Hawaii surgissem hoje com este mesmo espírito, é possível avaliar qual seria o seu impacto?
Nosso contexto atual não permitiria que algo como os Engenheiros do Hawaii de 1986 se tornasse um sucesso. Em primeiro lugar, a música popular não tem mais a mesma importância daquela época. O rock era um fenômeno que lotava ginásios, era assunto nos recreios e até motivo de briga. Esse público adolescente classe média que dava sustentação para as bandas está mais interessado hoje em games, futebol e vídeos no youtube. Em segundo lugar, mesmo que a música tivesse ainda um pouco da importância que tinha, o debate público está polarizado demais para permitir debates mais complexos a partir da arte. Ou você é do clube do Fidel ou do clube do Pinochet, caso contrário, é ignorado. Confessar sua dificuldade de entender a sexualidade difusa dos dias atuais não equivale a negá-la ou considerá-la um problema, no entanto, pode soar desse modo para quem está em busca de atalhos em vez de diálogo. Os debates mediados pela internet são cada vez menos tolerantes com sutilezas e auto-ironia.
Como você avalia a carreira solo do Humberto Gessinger nos dias de hoje? É possível comparar com Engenheiros? Quais as semelhanças e diferenças?
Humberto segue explorando raízes musicais do Sul casadas com o rock, como fazia desde o início do grupo. Além disso, apesar de tocar com músicos contratados, ensaia como uma banda de verdade. Há muita integração entre os músicos no trio atual. É algo bem diferente de um artista solo que só vê seus músicos no palco. É um esquema de trabalho muito parecido com o da GL&M. O que muda é que está mais maduro, lidando com temas mais transcendentes e criando as coisas a seu tempo, sem aquela euforia juvenil dos primeiros anos da banda.
Como você enxerga o trabalho hoje desenvolvido por Carlos Maltz? Os livros e os discos que surgiram após Engenheiros do Hawaii…
Gosto bastante do trabalho do Maltz, principalmente dos livros. Ele encontrou uma voz própria, um modo de abordar temas que sempre lhe foram caros, e o faz de maneira sólida, mas sem ser pedante. Estou muito curioso para ler seu próximo livro, que cria uma aventura sci-fi a partir de uma banda cover do Pink Floyd. Tem tudo para mais uma vez levantar bons debates.
Como surgiu a ideia da biografia dos Engenheiros do Hawaii? Qual foi o ponto de partida para a obra?
Desde meus oito anos, quando comprei um LP d'O Papa é Pop, a banda é algo importante para mim. Na faculdade de jornalismo, já pensava que a história da banda precisava ser contada. Era uma lacuna muito grande do nosso jornalismo cultural. Em janeiro de 2015, publiquei uma reportagem especial sobre a banda, por conta de seus 30 anos, no jornal Zero Hora – onde trabalho como setorista de livros. Me empolguei e levei adiante as pesquisas, então fui me acostumando com a ideia de que poderia escrever o livro que eu tanto queria ler há anos.
Ao escrever a obra você se se deteve ao contexto do que foi os anos 80 e o Rock Gaúcho. Hoje em dia, como está - em sua avaliação - o cenário o rock no país em no Rio Grande do Sul? Evoluiu ou involuiu?
O que aconteceu é que aquela onda roqueira gigante dos anos 1980, motivada por motivos econômicos, culturais e políticos passou, e o rock voltou a ser o que era antes: um gênero marginal, que sempre existirá, independente do establishment dar ou não atenção a ele.