Saudade e denuncia

01/08/2016 11:21 - Geraldo de Majella
Por redação

 

        O saudosismo é uma postura estática perante a vida: abdica-se do presente para reviver nostalgicamente um passado idealizado. Sempre que me deparo com essa manifestação sentimental, eu me pergunto: e daí? Porque se trata, a meu ver, de uma atitude anacrônica que não encerra qualquer lição, apenas acalentando um sonho esfumaçado pelo tempo. Saudade, assim, já disse o poeta, amarga que nem jiló.

 Dito isto, é necessário que se diga mais que esse Panorama cultural de Maceió que tens em mãos, ocupado leitor, embora contenha cálidas lembranças dos anos 70 para cá, não é em absoluto um livro saudosista, pelo fato de o autor ir além do sentimento de mera saudade para traçar em delicadas pinceladas a trajetória cultural da capital das Alagoas, inclusive denunciando os atentados praticados contra a memória da cidade e o descaso para com entidades merecedoras de respeito e atenção.

        Dividido em cinco partes – sebos, livrarias, bibliotecas, bares e restaurantes – tem como fio condutor a importância cultural de pessoas, instituições e estabelecimentos que marcaram época ou continuam presentes na vida cotidiana dos poucos mas sinceros amantes das coisas do espírito na mui leal e formosa cidade de Maceió (diga-se de passagem que, em toda parte, essa turma, embora barulhenta, é sempre minoritária).

Por suas páginas, em linguagem simples e fluida, desfilam personagens antológicos como seu Biu, involuntariamente transformado de carroceiro em sebista pioneiro no paredão da Assembleia, e Nô Pedrosa,raro espécime de anarquista praticante; livreiros antigos e atuais, cuja profissão seduz o autor pela missão de “disponibilizar um bem cultural que contribui para transformar as pessoas e o mundo”, como Geraldo Barroca Portela, entre tantos outros; editoras, como a Edufal, que aposta “num mundo mais culto, onde o livro passe a ser um bem de primeira necessidade”; bibliotecas públicas e privadas – algumas muito precarizadas – que coexistem com o mundo da informação digital; bares cuja clientela era (é) formada por uma fauna de intelectuais majoritariamente de pendores esquerdistas, amantes de copo e conversa, incluindo o Casa Blanca, “um bar com a foice e o martelo”, cuja característica principal era serem todos os seus sócios capitalistas dirigentes históricos do PC do B e onde se produzia o programa radiofônico “Conversa de botequim” – entrevistas ao vivo de personalidades dos mais variados matizes, como os políticos Cristovam  Buarque, Ronaldo Lessa, Renan Calheiros e Kátia Born, e até mesmo um camarada chamado Mossoró, considerado proprietário de bordel.

No quesito gastronomia, Majella dá ênfase a restaurantes populares da Ponta Grossa, onde a pobreza não impedia a formação intuitiva de autênticos e autênticas chefs (que, naturalmente, chamavam a si mesmos de cozinheiro e cozinheira), como era o caso da proprietária do lendário Buraco da Zefa, autora da receita mais sincrética jamais imaginada, a macarronada à cabidela, ou, no mesmo bairro, a Macarronada do Édson,ambiente eclético ao qual compareciam com assiduidade desde “esquerdistas que bebiam e comiam esbravejando contra a ditadura aos mais ferrenhos defensores do regime militar”.

O famoso Bar das Ostras, onde, nos anos 70, tive oportunidade de saborear o famoso camarão à beira da Lagoa do Mundaú, mereceu de Majella um réquiem, digno de uma autêntica instituição maceioense, cuja receita tornou-se, por lei, Patrimônio Imaterial da nação alagoana.

Tudo o que foi dito aqui não é mais que alguns destaques dessa narrativa tão saborosa quanto os quitutes dos bares e restaurantes dos bairros elegantes ou populares da cidade e tão fluida quanto a conversa de boêmios, intelectuais, gourmets e bom vivants em geral desfiadas interminavelmente nas noites mornas refrescadas pela brisa marítima de Maceió.

Vale a leitura.

Homero Fonseca é jornalista e escritor

 

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