Um show de horrores e de hipocrisia na Câmara Federal. Foi o que os brasileiros assistiram neste domingo histórico, dia 17 de abril de 2016. A autorização do encaminhamento do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff provocou uma avalanche de críticas à descompostura dos parlamentares. Da condução da sessão por um réu do maior escândalo de corrupção da história do Brasil, Eduardo Cunha (PMDB/SP), às vexatórias declarações e atitudes de quem votava naquele processo, tudo foi motivo de envergonhar a nação perante o resto do mundo. Mas onde está o pecado original, mesmo?
Muita gente, principalmente quem defende que o impeachment é um “golpe contra a democracia”, considerou ilegítimo ter deputados corruptos votando contra os 54 milhões de votos que elegeram Dilma em 2014.
Mas, para se constatar que nem os deputados federais, nem a classe política detêm o monopólio da hipocrisia, basta lembrar que a última eleição que rendeu à Dilma mais um mandato de presidente da República também elegeu aquela Câmara de Deputados composta por gângsteres, coronéis, gente sem consciência política, sem compromisso com o povo e com objetivos que jamais confessariam diante daquela tribuna.
Se os 367 votos de deputados a favor do impeachment foram um ataque frontal à democracia, quem foi às urnas em 2014 deveria saber que o que chamam de “golpe” está legitimado pelos seus próprios votos, mesmo que não tenham escolhido os eleitos como opção na urna.
Pois é. Se quem defende o impeachment, por verificar e constatar os crimes de responsabilidade cometidos por Dilma, ignora os 54 milhões de votos na presidente; quem não aceitar o andamento do processo de impedimento de seu mandato ignora que, dos cerca de 115 milhões de votantes da eleição de um ano e meio atrás, 97 milhões de brasileiros votaram para deputado federal e 58 milhões desses votos válidos escolheram 513 para o parlamento que tanta gente tenta deslegitimar devido à votação de ontem.
Na balança da hipocrisia, 54 milhões de votos de Dilma pesariam menos que os 58 milhões de votos na Câmara Federal. Mas não é por isso que o impeachment deve prosseguir no Senado Federal, onde há outros 49,5 milhões de votos, somente na última eleição que reconduziu figuras nocivas à política nacional, como o alagoano Fernando Collor de Mello (PTC). O número é bem maior se somados aos votos de quem conduziu ao senado a maior parte dos senadores, em 2010. E é bom lembrar que quem preside o Senado é outro denunciado no escândalo do petrolão, o alagoano Renan Calheiros (PMDB).
Quem está disposto a deixar de lado o discurso hipócrita de “defensor da democracia” para encarar os fatos com honestidade? Respeitar o resultado das urnas é um conceito democrático relativo, agora? Por que o mandato de Dilma é legítimo e o desses representantes, não? Por que os brasileiros admitem que os conselhos de ética sigam ineficazes contra os desmandos desses poderosos?
Há quem diga a verdade para seus próprios defeitos e falhas, ao se postar diante de um espelho. Mas há patologias, a exemplo da anorexia, que impedem o ser humano de enxergar a realidade sobre a própria saúde física e mental, na imagem refletida.
Cada justificativa hipócrita de ontem, tenha sido ela favorável, contrária ou pela abstenção diante da autorização do impeachment, expôs o retrato de uma sociedade que não enxerga o nível rasteiro da democracia que exerce. Um povo que acha que democracia se encerra no sonoro FIM da urna eletrônica, outorga poderes ilimitados para seus eleitos, desconhece e não se interessa pelo que fazem com o voto popular e acha que omitir-se diante da realidade da política brasileira também não é nada demais, pois “quem está lá foi eleito para cuidar do povo”.
Aí se encontra a gênese do golpismo numa democracia: deixar de ser cidadão. Deixar de cuidar de si mesmo, de forma coletiva e organizada. Deixar de enxergar que defender o impeachment não é um golpe contra o legado do PT pela distribuição de renda e de oportunidades no Brasil também é deixar de constatar que muitos brasileiros já estão carentes de tal herança, por culpa de outro golpe: o estelionato eleitoral tão comum na nossa democracia.
É fato que a reforma política é necessária para que os abusos de poder político e econômico deixem de ser utilizados tão ostensivamente para perpetuar as mesmas famílias nos espaços de poder do Brasil. Mas tal reforma jamais apresentará um resultado justo e verdadeiramente democrático, enquanto o golpismo seguir preenchendo o vácuo da cidadania, diante da hipocrisia que espalha suas raízes golpistas nas mais diversas correntes de pensamento dos brasileiros.