Gracias a la Vida

03/01/2016 21:35 - Geraldo de Majella
Por Redação

Ao completar 55 anos de idade (em 2 de janeiro), procurei realizar um balanço sucinto e o máximo possível abrangente da minha vida. As vitórias conquistadas e, claro, as derrotas sofridas. Esse balanço não tem as características nem se parece com um balanço empresarial. Os ganhos e as perdas são afetivos. Não perdi financeiramente nada significativo, ocasionalmente até pode ter ocorrido, mas foi irrelevante e não consta de minhas anotações contábeis.

Tenho procurado, a partir dessa fase da vida, qualificar as minhas buscas por coisas que me deem satisfação pessoal.

 O que fiz na vida e da vida foi além das minhas expectativas, principalmente para uma pessoa que pouco planejou os passos e/ou traçou metas e objetivos claros. A minha busca permanente tinha um alvo definido: a política, a militância política de esquerda.

Nunca me imaginei patrão. E cada vez menos possibilidades terei de me estabelecer como empresário, em nenhuma das condições: grande, médio, pequeno ou micro. Penso ter dirigido as melhores energias – desde a juventude até a década de 1990 – com o fim específico de quem trabalhava em jornadas full time na organização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em Alagoas. Havia me tornado um revolucionário em tempo integral, na mais ampla acepção da palavra e com a significação histórica que o termo teve no movimento comunista internacional.

Esse período, costumo dizer, foi o mais importante da minha vida, pois foi nele que aprendi tudo ou quase tudo do pouco que sei. E inegavelmente o PCB serviu de universidade em minha formação como cidadão, além de me ter facultado a convivência cotidiana com homens e mulheres, muitos deles operários ou de origem operária, trabalhadores de diversos ofícios, intelectuais, jornalistas e professores universitários.

           A pluralidade de classe existente no PCB e o sentido cultivado de pertencimento a uma organização com laços fraternos e internacional, transmitido de uma geração para outra, mudaram radicalmente a minha percepção de mundo.

Essas pessoas com quem convivi e em que procurei me espelhar foram e continuarão a ser os meus verdadeiros mestres. Eram pessoas sofridas, pobres e que sobreviviam com pequenas aposentadorias obtidas depois de décadas de trabalho penoso como operários, mas que pelos exemplos cotidianos de abnegação e pela firmeza de princípios ideológicos, transformaram-se para mim em paradigmas.

Lembrei-me do texto “O Povo”, do grande escritor português Eça de Queirós, que diz: “[...] Estes homens vivem nas fábricas, pálidos, doentes, sem família, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansão da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos [...]”.

Homens e mulheres com quem convivi e de que privei da amizade, além do companheirismo. Gente como o motorista de ônibus Rubens Colaço; o operário tecelão José Graciano dos Santos; o arrumador portuário Mário Correia da Silva; o garçom Evaldo Nunes de Oliveira; o mecânico de fogão Gilberto Soares Pinto. Outros, nem sequer os conheci pessoalmente, como Jayme Miranda, mas aprendi a admirá-los através dos relatos dos velhos militantes.

           O sonho acalentado de um Partido Comunista dirigente das grandes massas esvaiu-se. O fenecer de uma existência heroica me levou às lágrimas muitas vezes. Menos mal; sei de companheiros que perderam o prumo.

A minha trajetória de vida é insignificante diante de centenas de milhares de vidas dilaceradas nas masmorras, nas intermináveis sessões de tortura, e dos inúmeros assassinatos e dos que não tiveram o direito sagrado de ser enterrados dignamente, sendo declarados “desaparecidos políticos”.

Essa atrocidade, o deputado Alencar Furtado (MDB-PR) sentenciou como se fossem “filhos órfãos de pais vivos – quem sabe – mortos, talvez. Viúvas do quem sabe ou do talvez”.

Mais das vezes me surpreendo a refletir sobre o que o historiador Dirceu Lindoso anotou no prefácio do meu livro Caderno da Militância: “O sonho é um só, dividido em várias versões. A urgência do socialismo acabou. Mas não sua caminhada”.

A caminhada deve ser realizada para aprofundar a democracia. Isso, dito desta maneira, me parece ter outro significado, ainda pouco visível: com a democracia sendo apropriada pelas camadas e classes subalternas, o seu conteúdo será modificado e os valores mais significativos, não apenas o voto, que é o mais visível e conhecido, sofrerão transformações qualitativas.

O samba de Paulo Vanzolini diz tudo: “Reconhece a queda/ E não desanima/ Levanta, sacode a poeira/ E dá a volta por cima”.

O mundo mudou e eu, claro, mudei junto. Os caminhos abertos têm sido maiores que simples veredas. E os desafios pessoais que se apresentaram, enfrentei-os. Sem nunca ter sido professor de alfabetização de adultos ou mesmo de crianças, na luta pela sobrevivência aceitei esse desafio: foi um dos meus trabalhos, o primeiro em São Paulo.

Esse talvez tenha sido um dos grandes momentos de minha vida. A participação num projeto como o Movimento de Alfabetização de Adultos (Mova). Trabalhei no quinto subsolo do Citibank, na avenida Paulista. As duas turmas de trabalhadores-estudantes, todos nordestinos, sem que eu percebesse contribuíram para a minha adaptação em São Paulo. A vitória se concretizou quando, após 12 meses, todos foram alfabetizados.

As vitórias conquistadas são dessa natureza. Não receberei medalhas de reconhecimento. Ou então quando, como gestor público no exercício da função de Ouvidor-Geral do Estado de Alagoas, estabeleci uma rotina de visitas mensais aos presídios e passei a me reunir com e ouvir dos detentos as suas queixas e denúncias contra o Estado e o agente público estatal.

Esse diálogo foi o mais significativo em toda a minha vida, até o presente. O mundo dos presídios é um inferno. O que se pode criar como ficção do que seria a vida em presídios é pouco diante da realidade cruel e desumana. As vidas lá dentro são paralelas, os códigos de conduta e convivência são o de Hamurabi, a lei é a de Talião: dente por dente, olho por olho.

A presença do agente público nos presídios antes era exclusividade da polícia e dos agentes carcerários. Eu, durante 45 meses abri esse novo mundo para a sociedade conhecer a partir de outra perspectiva, a do seu porta-voz, o Ouvidor-Geral. Em todas as minhas visitas, levei a imprensa, que entrava nas celas e entrevistava os detentos.

Explicitavam-se as denúncias de tortura e maus-tratos, a falta de alimentação ou as péssimas condições da alimentação que os detentos recebiam. Essa é mais uma vitória a ser registrada. Quando fui substituído, a Ouvidoria-Geral foi silenciada e transformou-se num veículos de propaganda do governador. O canal aberto no aparelho de Estado onde a sociedade passaria a ser ouvida nas suas reivindicações deixou de existir. O órgão foi extinto.

Mediar conflitos agrários para evitar violações dos direitos humanos e fazer com que o agente estatal de segurança cumprisse a lei também faz parte do rol de vitórias e conquistas.

No balanço sumário que realizo, a coluna de ganhos é maior, bem maior que as perdas. Os meus ganhos foram afetivos, bem como as perdas. No campo de batalha institucional, muitas das minhas ilusões foram dissipadas, algumas num momento de ascensão política do movimento de esquerda em Alagoas. Esses atores outrora vestiram a camisa de esquerda; ao conquistar o poder, conciliaram tanto que transformaram vitórias eleitorais espetaculares em derrotas bisonhas.

As derrotas não são pessoais; foram da esquerda, de um campo político que foi na sequência atomizado. Nem por isso guardo rancor. Vida que segue.

Isabela é a minha principal conquista no plano pessoal. Filho significa a sua existência na vida de outra pessoa. Isso pode parecer lugar-comum, e creio que seja mesmo. É o que sinto.  

A minha fortuna acumulada é considerável. Disponho de uma carteira de bons amigos e amigas. Nasci numa família que me faz sentir orgulho dos meus pais (Josias e Marinalva), da irmã, das sobrinhas e de dezenas de parentes. E sinto-me igualmente orgulhoso em ter nascido em Anadia (AL).

  Sou um tipo que não reclamo das mulheres, nem das que namorei e por motivos outros não ficamos mais tempo, menos ainda das com quem vivi, que amei e eventualmente nos desentendemos. A todas agradeço os braços abertos, o colo e os momentos que compartilhamos. Não sou marinheiro, mas consegui navegar até encontrar Vânia, o meu porto seguro.

Feliz com tudo, deixo “a vida me levar” sem muita pressa, porque “não quero ter razão. Quero é ser feliz”.

   E por fim, ganhei a renovação do Green Card no dia 1º de outubro de 2010, ao sobreviver a um infarto.

Em 2016, comemoro 55 anos. O que eu mais quero agora é ouvir Paulinho da Viola: “Onde a dor não tem razão”:

 

“Canto

Para dizer que no meu coração

Já não mais se agitam as ondas de uma paixão

Ele não é mais abrigo de amores perdidos

É um lago mais tranquilo

Onde a dor não tem razão

Nele a semente de um novo amor nasceu

Livre de todo rancor, em flor se abriu

Venho reabrir as janelas da vida

E cantar como jamais cantei

Esta felicidade ainda

Quem esperou, como eu, por um novo carinho

E viveu tão sozinho

Tem que agradecer

Quando consegue do peito tirar um espinho

É que a velha esperança

Já não pode morrer.”

(Paulinho da Viola e Elton Medeiros)

 

 

 

 

 

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