A Conjuntura Econômica Desfavorável

08/08/2014 06:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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A economia brasileira não vive um momento auspicioso. As previsões de crescimento do Produto Interno Bruto caem sucessivamente. A taxa de inflação bate o teto da meta de 6,5%, as vezes ultrapassando-a dependendo do período que o analista toma como referência. As contas externas se deterioraram e podem ultrapassar os US$ 80 bilhões de déficit em 2014. Com crescimento mais baixo as receitas fiscais da União, principalmente do governo federal, também declinam, comprometendo o superávit primário, poupança que o governo realiza para pagar uma parte da conta juros da dívida pública. Falando sobre ela, com a desaceleração da economia, sua relação com o PIB tende aumentar gradativamente. A taxa de juros básica [Selic] já se encontra em patamar muito elevado, 11%, forçando ainda mais a despesa financeira do governo federal, um dos grandes nós górdios de suas contas públicas.

Mas, por que iniciamos com esse breve diagnóstico conjuntural, que alguns poderiam chamar de análise “elevador” [esse sobe, aquele desce, portanto outros descem e também sobem etc.]?

Isso é parte do que a mídia no país vem noticiando insistentemente, levando a crer que o país vai afundar economicamente e a recessão se instalará de vez, com todas as suas consequências possíveis sobre a geração de empregos e crescimento da renda, sobretudo nos extratos mais pobres. Em entrevista ao programa Diálogos com Mario Sérgio Conti, na Globonews, no dia 07/08, o economista tucano de colorida plumagem, Persio Arida, um dos formuladores do Plano Real, comentou que a situação econômica é preocupante, mas não existem motivos para o pessimismo e as mudanças de rumos são simples para a retomada do crescimento econômico.

Em artigo publicado no dia 03/08/2014, no Jornal Folha de São Paulo, o prestigiado colunista Samuel Pessoa, físico de graduação e doutorado em economia pela USP, argumenta que os dois principais problemas que afligem nossa falta de dinamismo econômico, nos últimos anos, é a baixa produtividade do trabalhador brasileiro, em razão de um sistema de oferta de educação precária, e a falta de qualidade do marco institucional [clique aqui para acesso ao artigo].

Ele inicia seu artigo debatendo criticamente dois autores, Fernando Nogueira da Costa [prof. do Instituto de Economia da UNICAMP] e José Luís Fiori [prof. da Universidade Federal do Rio de Janeiro com ampla produção na área de economia política internacional]. Eles defendem em artigos o inapropriado método econômico de análise comparativa entre países que possuem graus diferenciados de desenvolvimento econômico e trajetórias distintas de formação histórica, como Chile, Peru, Colômbia, México, Argentina e Brasil, por exemplo [clique nos números 1 e 2 para acessar os artigos].

A certa altura de seu texto, Samuel Pessoa afirma: “Como, em relação à América Latina, temos não só níveis semelhantes de produtividade do trabalho como grande paralelismo nas trajetórias de desenvolvimento histórico e institucional, além de dificuldades semelhantes em construir sistemas públicos de educação com qualidade, penso que os países da região formam um grupo de referência para olharmos nossa trajetória e nossas possibilidades”.

Mesmo com uma boa retórica e argumentos que parecem sólidos à primeira vista, essa passagem do artigo do Samuel Pessoa não é suficiente para demonstrar que as comparações entre as dinâmicas econômicas dos países da América Latina são possíveis e fáceis. Sem a realização de algumas e importantes mediações, podemos misturar tudo na mesma “caldeirada” e degustar ao sabor do paladar. Economia não é gastronomia, entretanto.

Primeiramente, não é possível afirmar com elevado grau de certeza que existe “grande paralelismo nas trajetórias de desenvolvimento histórico e institucional” entre os países da América Latina. A maior parte da literatura que trata da história econômica da formação desse imenso continente, busca, justamente, diferenciar o processo de colonização e exploração econômica em que a região foi submetida por tantos séculos.

De imediato, torna-se importante relembrar que mesmo sendo submetidos à exploração colonial pelas sociedades ibéricas, as estratégias de dominação, a estruturação política e os arcabouços institucionais levantados pelos portugueses e espanhóis foram completamente distintos. Até mesmo o processo de crise do sistema escravista colonial teve motivações, consequências e redefinição territoriais muito diferentes, tanto entre os dois modelos de exploração, quanto nos sistemas locais onde se mantinham laços de dominação [mesmo no vasto território colonial espanhol a formação dos países após os processos de independência teve rumos diferenciados].

Por exemplo, enquanto todo o território dominado pelos espanhóis foi “esquartejado” em sistemas societais que deram origem aos vários países latino-americanos após os movimentos independentistas e libertários, os domínios portugueses foram conservados e não sofreram desmembramentos. Esse aspecto já denota uma imensa diferença entre as trajetórias de desenvolvimento histórico e institucional envolvendo as nações que emergiram na região entre os séculos XVIII e XIX.

Outro aspecto fundamental é a constituição, expansão e qualidade dos sistemas educacionais que surgiram nesses países. Realmente, fica difícil argumentar como Samuel Pessoa quando afirma que temos “dificuldades semelhantes em construir sistemas de educação com qualidade” na América Latina. Ora, basta observar e comparar os índices de analfabetismo existentes entre o grupo da Argentina, Chile e Uruguai, com os do Brasil, Paraguai, Bolívia e Equador, por exemplo. No primeiro, as primeiras instituições de ensino tiveram forte influência das ordens religiosas jesuítas espanhóis. A influência portuguesa foi bem menor por causa, dentre outros motivos, pelo maior pragmatismo aventureiro do processo de exploração colonial [o clássico Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda descreve isso com muita precisão].

A preocupação jesuíta na criação das primeiras instituições de ensino se restringia aos colégios (colleges) sem responsabilidades ou preocupações científicas. Já nos séculos XVII e XVIII, foram criadas as primeiras universidades na chamada América Espanhola, sempre por iniciativa da Igreja Católica. No século XIX, por exemplo, a Argentina realiza sua primeira grande reforma no ensino superior. No Brasil, por exemplo, esse movimento foi muito tímido, iniciando com a fundação da primeira faculdade na Bahia, em 1808, por ocasião da chegada da Coroa portuguesa no país, que formaria parte de seu séquito, principalmente, na área médica. Muito depois, somente em meados do século XX é que o país contará com universidades.

Portanto, são poucas as razões históricas que dão sustentação as afirmações do Samuel Pessoa. Infelizmente, na graduação em física não se pode contar com uma formação nem mesmo superficial de história. Até mesmo nos cursos de graduação em ciência econômica essa área tão importante tem perdido espaço para as ciências exatas. Uma pessoa pode ser autodidata em áreas mais sociais e humanas, mas, certamente, apresentará deficiências em termos metodológicos e orientação epistemológica em seus primeiros anos de formação universitária.

Voltamos ao início de nossa conversa fazendo a ponte com o que foi colocado até o momento. Acaba de sair o Estudo Econômico da América Latina e Caribe 2014, produzido pela Comissão Econômica para América Latina [CEPAL]. O que ficou evidenciado nesse detalhado documento, é que o contexto da economia internacional na segunda metade do século XXI é muito mais desfavorável para os países da região que na década anterior [clique aqui para acessar o estudo]. Principalmente para aos países que têm seus sistemas econômicos assentados na produção de bens primários para exportação.

A primeira e imediata constatação é a deterioração gradativa do balanço de pagamentos dos países que compõe o estudo. O aumento dos gastos com turismo e remessas de lucros e rendas ao exterior contribuem fortemente para isso. Discordando completamente dos argumentos do Samuel Pessoa apontados na citação acima, o estudo conclui, em geral, que o impacto da desaceleração da economia mundial é diferenciado entre países da América Latina, de acordo com sua estrutura exportadora, sua inserção internacional e seu espaço fiscal e monetário. Entretanto, a situação piorou para todos eles e os efeitos sobre a economia brasileira e seu comportamento não poderiam ser diferentes. A conta corrente que registra o saldo da movimentação de comércio e serviços com o exterior, se aproxima do nível negativo de 3% em toda América Latina e um pouco acima disso no caso brasileiro

Para a América Latina em geral, mesmo com as diferenças que devemos considerar, todos os principais componentes da demanda estão arrefecendo [consumo familiar, investimento e comércio exterior].

No primeiro trimestre de 2014, o consumo das famílias desceu para menos da metade dos níveis registrados no mesmo período de 2012. A formação bruta de capital fixo [taxa de investimento] registrou crescimento negativo, bem diferente dos três primeiros meses de 2012, quando alcançou 6% de expansão, comparando com o mesmo período de 2011.

Mesmo movimento de queda foi verificado com as exportações, indicando menor dinamismo da economia internacional, e com as importações, acentuando a queda do nível de consumo interno da região. Para compensar esse quadro desfavorável, os gastos publicos ainda mantém taxas de crescimento mesmo que tímidas, bem como o ainda fraco desempenho das exportações.

América Latina: taxa de variação do PIB e dos componentes da demanda agregada, com relação a igual trimestre do ano anterior, primeiro trimestre de 2012 a primeiro trimestre de 2014 [em %, sobre a base de US$ constante de 2005]

Com o arrefecimento da demanda agregada, sobretudo do consumo das famílias, a geração de empregos em toda a região perdeu velocidade a partir do primeiro trimestre de 2012, como demonstra o gráfico abaixo. Esse movimento tem correlação direta com o aumento da taxa de desocupação. Por essa razão, dificilmente podemos defender a tese de que existe uma alta correlação entre os beneficiários dos programas sociais e assistenciais com o crescimento da taxa de desocupação, ideia muito defendida pelo senso comum, principalmente brasileiro. Claro que os flihos das famílias beneficiárias estão passando mais tempo nas escolas para que elas tenham o direito ao Programa, mas isso não é tão determinante assim. Existente mesmo é uma desaceleração do mercado de trabalho em razão da perda do dinamismo do mercado interno e diminuição do ritmo exportador.   

América Latina e Caribe [10 países]: variação interanual das taxas de ocupação e desocupação, primeiro trimestre de 2008 e primeiro trimestre de 2014 [em %]

Em relação a inflação, verifica-se um movimento cíclico das taxas na América Latina e Caribe. Por exemplo, no Brasil, desde 2011, a taxa de inflação tem se comportado de forma cíclica, variando próximo ao teto da meta de 6,5% [2011 e 2013] e próximo ao centro da meta de 4,5% [2012]. A tendência para 2014 é a inflação novamente margear a meta superior. Entretanto, a situação brasileira é muito mais confortável que o conjunto da América Latina e Caribe, como podemos observar no gráfico seguinte.

América Latina e Caribe: taxas de variação do índice de preços ao consumidor em 12 meses, média ponderada, janeiro de 2011 a maio de 2014 (em %)

Um primeiro dilema, portanto, é controlar as taxas de inflação sem comprometer ainda mais o crescimento econômico, não desaquecer o mercado de trabalho e inibir ainda mais os investimentos. Outro, controlar os gastos públicos correntes estancando seu crescimento, fazer escolhas estratégicas na expansão dos serviços públicos e elevar os investimentos governamentais.

Vemos nos gráficos abaixo que as finanças públicas se deterioraram em toda região. Apesar das receitas totais terem crescido, os gastos se elevaram muito mais, comprometendo as metas de superávit primário. O gráfico seguinte demonstra como os gastos correntes evoluíram mais que os investimentos públicos, enquanto o pagamento de juros continuou quase inalterado. Ou seja, para que a região cresça economicamente é preciso fazer escolhas políticas difíceis, pois os interesses dos governantes e dos credores das dívidas públicas [os rentistas] não são coincidentes, necessariamente, apesar do peso e importância desses agentes na definição da execução orçamentária e das políticas econômicas em anos recentes.

América Latina [19 países]: indicadores fiscais dos governos centrais, 2000-2014 [em % do PIB]

América Latina e Caribe: gasto público do governo central, média simples, 2008/2014 [em % do PIB]

Especialmente no caso brasileiro, o governo do PT, a partir de 2003, optou pela via do crescimento econômico com distribuição de renda, através da criação e expansão de programas sociais e assistenciais, bem como a recuperação do salário mínimo, isso tudo aliado a uma conjuntura econômica internacional muito favorável às exportações. Essa escolha, juntamente com os programas de aceleração do crescimento [PAC´s], permitiram o deslocamento da curva de demanda agregada para a direita. O mercado interno tornou-se dinâmico e febril. As receitas fiscais cresceram e a população mais pobre e em extrema pobreza teve condições de melhorar de vida, pelo menos materialmente. Para o IPEA, cada R$ 1,00 gasto com o Bolsa Família provocou um impacto de R$ 2,4 no consumo das famílias e R$ 1,78 no PIB.

Somente a título de ilustração e usando os dados do IpeaData, em Alagoas o número de pessoas pobres [que aufere algum tipo de renda de até R$ 160 média/mês] era de 1,958 milhão, em 2003, passando para 1,1 milhão em 2012 [redução de mais de 40%]. Já o número de pessoas na condição de miséria [até R$ 80 média/mês] era de 1,070 milhão e passou para 347 mil no mesmo período, ou seja, uma redução de 67%!.

O terceiro mandato do governo do PT, dessa vez na gestão da Presidente Dilma, tem enfrentado um quadro externo muito diferente, e está sob forte pressão de grandes agentes econômicos localizados da grande indústria brasileira e no sistema financeiro-bancário. Desde 2012, o governo passou adotar um modelo de política econômica [fiscal, principalmente] que beneficia alguns segmentos empresariais do país com subsídios fiscais, represamento de tarifas públicas, concessão de serviços públicos à iniciativa privada etc.

Somente em incentivos e concessões fiscais em 2013 foram quase R$ 78 bilhões e poderá alcançar, em 2014, R$ 94 bilhões, segundo dados da Receita Federal. Isso sem contar ainda com os aportes do BNDES para setores e empresas selecionadas dos ramos industrial e agroexportador brasileiro. Imagine ainda se computarmos a evasão fiscal que poderá chegar próximo dos R$ 500 bilhões em 2014 [R$ 415 bilhões ano pasasdo, segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional. Ver matéria aqui]. Essa política de incentivos também é responsável pela deterioração do quadro fiscal brasileiro. Então, é injusto creditar somente na conta dos Programas Sociais e Assistenciais e nos gastos correntes os problemas orçamentários do país.

Portanto, mesmo com essa guinada da estratégia econômica do PT para combater o Custo Brasil e atacar os problemas do lado da oferta [produção], a taxa de investimento no país continua patinando entre, apenas, 17% e 18% do PIB.

Para concluir, já nos desculpando pelo longo artigo que propomos ao leitor, qualquer que seja a conjunção de forças políticas que governará no período 2015-2018, terá que realizar mudanças na gestão da política econômica, sobretudo no campo fiscal e recuperar a autonomia da política monetária [se deixar influenciar menos pelos mercados financeiros].

Os remédios poderão ser amargos, caso o próximo governo assuma uma postura mais conservadora e se alinhe por completo ao pensamento econômico mais ortodoxo, que prima pela austeridade fiscal, com cortes nos gastos públicos sociais [principalmente], política de arrocho salarial, juros elevados [como exclusivo remédio para conter a demanda e controlar a inflação], e política cambial flutuante [objetivando incentivar a mobilidade de capitais internacionais, que não pagam impostos e tornam ainda mais vulnerável nossa condição externa].

Por outro lado, podemos ter uma alternativa a essa estratégia conservadora, que priorize: políticas de contenção das despesas públicas correntes, sem cortar nos gastos e programas sociais e assistencialistas; por consequência, aumentar a capacidade de investimentos públicos em saúde, educação, segurança pública e infraestrutura, com objetivo de ampliar os canais indiretos de inclusão social; continuidade na recuperação do salário mínimo, como estratégia de fortalecer o mercado interno; manutenção da capacidade de consumo das famílias entre outras medidas expansionistas.

Evidente que é preciso também avançar nas principais reformas que são necessárias e urgentes para azeitar a relações institucionais, políticas e econômicas no país, como as reformas agrária, fiscal-tributária e a política. Mas existe mesmo lideranças políticas capazes de conduzir esses processos e construir alianças em torno deles? É aqui que reside um dos nossos maiores problemas políticos da atualidade.

 

 

 

 

 

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