Crônica de uma morte desejada

09/07/2013 09:09 - Welton Roberto
Por Welton Roberto
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Morri. Virtualmente desliguei os aparelhos que de alguma forma me davam a sobrevida nas redes sociais e lentamente, ou abruptamente, deixei que meu avatar se despedisse de mim e de tantos outros amigos que fiz neste mundo estranho com gente perfeita e de felicidade absoluta e plena. Na minha lápide virtual nenhuma mensagem, nenhuma inscrição ou frase de efeito. Talvez um “Offline” para arretar a “suassunidade” do grande Ariano que ainda grafa o “oxente” ao invés do “ok”.  

Nada glorioso ou fúnebre que marque este momento da passagem de um mundo virtual para... para qual outro mesmo? Bem, na falta de outro mundo virtual, fico com a resposta do retorno. O retorno ao mundo dos vivos de verdade, de gente de carne e osso e sentimentos, que erra, que xinga, que peca e, que algumas vezes, sabe perdoar. Gente que tem cheiro, que chora e ri sem se preocupar se a foto vai ficar boa para o desfile do “outro mundo”.  

O mundo real, onde existem corruptores e corruptos, onde nem todo dia está bom, onde temos milhões de problemas para resolver, onde as fotos das comidas ainda se assemelham ao meu amado arroz com feijão e ovo da minha inesquecível avó Esmeralda, ao invés de tanto vinho de nomes esquisitos e comidas chiques com nomes mais esquisitos ainda cujas imagens são postadas com algum cansaço visual e irritação “neuritônica”. Ao menos os meus “Tico e Teco” ficam bem putos ao apreciar o cardápio nada popular dos avatares da gastronomia surreal.

Ao invés dos “partiu” não sei o que lá, reviverei o “estou indo” sem a preocupação se a foto ficou bem focada, mas com a única atenção de explorar aquele momento só para mim e para aqueles que vão dele aproveitar. Sei que serei o único, ou quase isso, a prestar atenção nos robóticos que vão ficar querendo se mostrar a todo tempo neste mundo que para mim não existe mais, mas tentarei fazer daquela velha opinião formada sobre tudo um diferencial, alguém que se revoltou com a robotização um tanto quanto pasteurizada e vai vestir aquele surrado jeans revolucionário para dizer: basta! Eu não sou um avatar!

Não! Por favor, como último desejo, embora já tenha morrido por lá, dispenso as lamentações e os pedidos para a ressurreição. Não haverá tampouco missa de sétimo dia no céu virtual para relembrar aquele que agora depois de morto passará a ser responsável por um legado de palavras e pensamentos expostos com a coragem de quem se despiu e não se envergonhou dos seus princípios e valores revelados, de quem nunca se acovardou ou correu de uma discussão seja com quem quer que fosse, independentemente de grau de instrução ou status, ou até a quantidade de seguidores, (os de pouco seguidores eram os plebeus, segundo a linguagem daquele mundinho que desencarnei), mas pelo simples prazer da refrega contemplativa, mesmo quando era “aconselhado” a não fazê-lo em épocas eleitorais aonde além de avatares, alguns colocam máscaras e desfilam mentiras sinceras que interessam.   

O mundo que deixei era complexo de se entender, pois seus habitantes atrás de seus avatares se mostravam de uma honestidade ímpar, de uma incorruptível perfeição que acabava sendo mais surreal do que já é. Ninguém ali nunca bebeu e dirigiu, nunca furou fila, nunca colou em prova, nunca vendeu o voto, nunca subornou uma autoridade policial para evitar uma multa, nunca pediu favores a políticos, nunca estacionara na vaga destinada aos deficientes, nunca furara o sinal, usavam o cinto de segurança, procuravam estudar todas as leis para sempre andar de acordo com as regras, fiscalizavam a atividade política nas casas legislativas, conheciam a fundo detalhes de orçamentos públicos nunca dantes lidos;  estranhamente apoiavam uma lei que os impedia de votar em pessoas sujas, ou seja, são tudo isso e ainda precisavam de uma lei que os protegesse deles mesmos.

E fazem passeatas virtuais, colam cartazes, endeusam, santificam e condenam, condenam muito. São juízes para toda obra e ocasião, já têm a sentença pronta a disparar, basta um pequeno deslize... dos outros, pois a corrupção e a desonestidade só reside nos outros.

Pois é. Morri. Talvez desistindo de viver um avatar possa compreender de novo a minha vida real, voltar os olhos nos olhos de quem preciso pedir perdão, a quem devo perdoar, tocar o chão com os pés descalços sem medo da chuva e do barro, redescobrir o vento nos poucos cabelos pretos que ainda me restam e nos tantos outros brancos que afloram todos os dias na fronte franzida de quem tem contas, problemas de verdade, preocupações que não se dissipam no entoar do boa noite ou no porvir do sol candente com um acachapante bom dia “faces ou bom dia tuiteiros(as)”. Talvez, nos dizeres de Drummond tenha perdido o bonde e a esperança de que ali eu pudesse realmente ser feliz.

Por fim, recobro os sentidos da morte sorumbática e me lembro das lições de ontem do Papa Francisco na Lampedusa-Itália : “Abbiamo perso la capacità di piangere” (Perdemos a capacidade de chorar). Talvez, realmente a tenhamos perdido, pois de uma hora para outra saímos de nossos corpos e fomos tomados por um avatar que dominou a nossa vida em um mundo perfeito e sem necessidade de arrependimentos.

Eu, mais uma vez, vou me rebelar de novo, vou preferir chorar...

  

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