Boa noite. Posso falar com você? Não, não, não precisa ter medo. É rápido! Eu preciso lhe contar minha história. Não, não, não feche a janela. Eu era motorista de caminhão, não sou daqui. Agora sou dependente químico, isso é uma doença, você sabe, né?! Não consigo evitar. É meu corpo que pede. É uma doença! Uma pessoa ficou de me dar os dois reais que preciso, mas não me deu. Meu corpo pede, sou dependente, é uma doença. Por favor, se a senhora puder, me dê dois reais. Mesmo que não seja por mim ou pela doença, mas que seja pela minha sinceridade...”.

Isso acabou de acontecer. Saía de um show e fui abordada por um “flanelinha”, sim, ele tinha uma flanela nas mãos, ele também vestia roupa preta, suja, era louro, magro e sujo. Falava rápido, sem pausas, e tinha os olhos vidrados, fundos, os ossos de seu rosto eram salientes e ele não parecia mentir.

A história que me contou pode não ser verdade, mas também pode ser, ao menos doente ele é, ou não diria isso. Afinal, os adictos desenvolvem uma capacidade ímpar de inventar histórias e contá-las como se realmente fossem verdades, também possuem uma enorme capacidade de sensibilizar, de se vitimizar e parecer frágil. Sua intenção primeira é a de esconder o vício, depois é de sustentá-la.

E as palavras que ouvi mexeram comigo. Quantas vezes não ouvi relatos de adictos, relatos de usuários que não querem abandonar a droga e outros que continuam lutando para que a droga não os derrote? Mas esse de hoje mexeu mesmo. Primeiro pela espontaneidade, nunca fui procurada por um adicto, eu que os encontro e converso. Segundo, tive medo, o ambiente era propício para uma abordagem violenta, mas ele foi educado, inclusive falava o português corretamente e não usava gírias. Terceiro, vi sinceridade, vi desespero, fiquei atordoada, não consegui pensar direito, tive vontade de descer do carro e conversar, tive vontade de sair correndo, tive vontade de chorar, tive vontade de lhe prometer um emprego, tive vontade de fingir que não ouvi nada daquilo.

Mas ouvi...

O rapaz só queria dois reais, talvez eu tenha sido o último recurso dele antes de partir para o furto. O corpo dele pedia, ele não conseguia resistir, ele não queria me fazer mal, ele só queria aplacar sua dor, seu vício. A arma escolhida foi a sinceridade, a sensibilização.

Há locais na Holanda onde o governo fornece todos os meios para o uso de drogas da forma mais segura (como se houvesse alguma), fornecem material descartável e locais onde não corram riscos, tornando-os menos vulneráveis. Mas o governo holandês pode tratar assim seus adictos, afinal seu sistema público de saúde e de segurança funcionam, aqui não.

E dar dinheiro aos usuários de drogas? Seria financiar o tráfico, numa visão macro da situação? Ou seria ajudar a aplacar a dor de uma doença incurável – apenas controlável? Dar dinheiro pode evitar crimes? Mas cabe à sociedade pagar pela dependência dos doentes que o sistema de saúde pública não consegue proteger? Mas no final das contas, quem paga por essa dependência não é a sociedade mesmo?

E então? O que fazer?

Descartes já dizia: "Não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis".