Causo minuto: Anarquista, graças a Deus!

11/11/2012 08:01 - Welton Roberto
Por Redação

Era comum vê-lo desafiando o padre da cidade nas pregações da missa dominical. Não tinha milagre advindo do Senhor que ele não contestasse. Multiplicação dos peixes e dos pães? Ressurreição da carne? Cura de cegos, leprosos? Nunquinha!

A vida de Abelardo era questionar. Nada para ele tinha sentido se não lhe fosse tudo explicado dentro de uma razão lógica puramente cartesiana. Fé? Só nas suas convicções. Mas não perdia uma missa. Sentia prazer em aperrear o santo padre Nicodemus que vez ou outra perdia a paciência e apelava para palavras não tão santas e ameaças de excomunhão do enviado do Tinhoso, como ele mesmo confessava às carolas mais próximas.

Viviam às turras. Mas aquela relação parecia de dependência existencial. Quando, vez por outra, Abelardo perdia a missa, o padre sentia falta da sua contestação ácida e até achava que ela ficava sem graça. Escolhia os sermões direcionados à conversão de Abelardo pois achava que aquela era a sua missão dada pelo Senhor.

Abelardo, por outro lado, não sabia entoar suas teorias anarquistas sem que fosse na presença do santo padre Nicodemus. Era mais ou menos um Ying-Yang tupiniquim.

Mas o que escondiam de todos mesmo era a afinidade pelo futebol. Torciam fervorosamente pelo mesmo time com a mesma intensidade que naquele ano estava ameaçado de cair para a série Z do campeonato piauiense.

Era o último jogo do campenonato e o Furacão da Serra Sport Club precisava golear para fugir da degola e permanecer na "elite" do futebol. Combinaram de ver o jogo juntos, pois a ocasião não permitiria desavenças. Tudo precisava estar harmonicamente perfeito e todos os santos, deuses, orixás, crenças, descrenças, precisavam estar ali na ponta da chuteira do artilheiro do time que não fazia um gol há 55 jogos.

Sentaram lado a lado para a surpresa de todos os torcedores. Abelardo, o Tinhoso anarquista, e o santo padre Nicodemus juntos?

"Só o futebol para fazer este milagre", atentou o treinador do time que usou isto como força motivacional na preleção para os jogadores. Nequinho, o artilheiro dos gols perdidos e nunca achados, prometeu que iria desencantar e que iria naquele dia fazer todos os gols que vinha prometendo há 55 jogos.

Era a sua última chance. O delegado da cidade já havia determinado a prisão dele caso o time caísse para a série Z do futebol por estelionato futebolístico, tudo acordado com o juiz e o promotor de justiça. Iria ser preso e pronto! Iriam utilizar a tese anárquica de Abelardo como fundamento e não teria santo padre que o retirasse do xilindró!

Todos nervosos, cidade em polvorosa, povo atento, expediente suspenso na prefeitura, silêncio retumbante. Começa o jogo e logo na primeira bola que Nequinho chutou para o gol ela entrou no ângulo!

Goooooooooooooool, goooolaaaaaaço  para o delírio de todos.

Abelardo se abraçou com o santo padre que fazia sinal da cruz e abençoava aquele momento.

Mais uma vez o Furacão Sport Club vai ao ataque e a bola vai para Nequinho que, de olhos fechados, dá mais um chute certeiro e faz o segundo gol do time para o espanto de todos! 10 minutos de partida e já estava dois a zero. Mais dois gols e o time estaria salvo.

Torcida em festa e apreensiva, Abelardo agarrado na batina do padre e no terço que acabou sendo emprestado por uma carola viciada em jogo tornava mais emocionante a partida.

Fim de primeiro tempo e o delegado da cidade em tom ameçador mostra a chave da cadeia para Nequinho e faz um sinal de que ele ainda não teria se livrado do crime!

Começa o jogo no segundo tempo e mais um milagre de Nequinho. Cobrando falta ele acerta mais uma vez o ângulo do goleiro e gooooooooooooooooooooooolllll para o delírio de todos.

A esta hora Abelardo já estava de joelhos e fazendo preces ao Senhor para a surpresa do padre e de todos os torcedores. Euforia, animação, alegria e...apreensão. Faltava um único gol, um mísero golzinho para a cidade ficar em paz de novo e as turras voltarem a acontecer nas missas dominicais.

Mas o imponderável começou! Os deuses do futebol estavam de zombação naquele dia. Nequinho passou a errar gols imperdíveis, era o Nequinho de sempre de novo. Depois de três golaços passou a perder gols infantis que a té a nossa avó faria.(A minha pelo menos, faria!)

44 minutos do segundo tempo e escanteio para o Furacão Sport Club, última chance, último ataque, o juiz já tinha dito, mesmo sob a ameça de uma pisa bem dada pelo delegado da cidade, que não teria acréscimo nenhum.

Escanteio cobrado e Nequinho faz mais um gol. Só que desta vez ele coloca a mão na bola e simulando que havia sido com a cabeça empurra a gorduchinha para o gol.

O santo padre grita gol, Abelardo desolado vira para ele e diz que a regra é clara e que gol de mão não vale.

Uns gritando, outros apreensivos em saber se o árbitro viu ou não a mão de Nequinho na bola. Até o apito do árbitro e a marcação efetiva do gol "válido" foram segundos de agonia, aflição e provação das convicções.

"Que regra? Aqui não tem regra não, você não viu Abelardo que foi a mão de Deus que empurrou a bola para o gol? A mão de Deus vale!" Consagrou o santo padre Nicodemus.

Goooooooooooooooooooooooooooooooooooool! Explodiu a torcida em festa! Abelardo sem acreditar que gol de mão valeu, passou a dar algum crédito aos milagres divinos. E regra, para quê? Ele era anarquista mesmo! 

Naquela hora, ainda em euforia e vendo que o árbitro marcou o gol da salvação, Abelardo se ajoelhou e gritou de alegria e euforia consagrando a anarquia divina no futebol em nome da felicidade e da paixão daqueles que seriam dali por diante anarquistas, sim, mas graças a Deus!

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