Dor para curar a dor... essa coisa de blues

22/10/2012 10:45 - Ensaio Geral
Por Redação
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Goretti Brandão

Vinham de uma longa caminhada, quando pela primeira vez, ela observou que havia muitos frege-moscas bem nos beiços da pista. Em um deles avistou Edite, uma idosa e excêntrica senhora e conhecida de ambos, que lhe cumprimentou com uma cara de pra-mim-tanto-faz-como-tanto-fez. Isaura por sua vez, trazia consigo e há tempos, uma tristeza profunda disfarçada de indiferença. Adiantou-se e mostrou, 'Olhe quem está ali, Olavo?!' e seguiu em frente. Olhou para trás e viu quando o marido foi ao encontro de Edite. 'Nunca que eu soubesse que ele tinha tanto apreço por ela. Logo Olavo, que de tão estranho, vive de evitar as pessoas', pensou.

Ao que parecia um hábito seu, diário, automático, seguir pelo caminho de sempre, pela rua lógica, aquela à sua frente, que formava um ângulo reto com a que seguia, e que a levava à sua casa, Isaura o contrariou e seguiu andando na mesma direção em que vinha. Talvez porque suas pernas a levassem, talvez porque a indiferença a tivesse distraído, e distraída não entendera que naquele momento uma outra Isaura dentro dela, atrevida, fizera a escolha de caminhar outras andanças.

Quando se deu conta, perdera-se e com ela a noção de onde se encontrava. Aonde estou indo? Tentou em vão lembrar de um ponto de referência que a levasse de volta à sua vidinha cotidiana e previsível, de tão repetitiva que tem sido. Isaura fez esforços em vão para reconhecer aqueles estranhos lugares. Sabe apenas que está andando em pontas-de-rua, porque todas as pontas de rua se parecem. Mas o lugar é completamente desconhecido, embora Isaura tenha a certeza de que está em território conhecido. Como assim? Ela, infelizmente, não sabe explicar como.

É a cidade onde mora, mas essas ruas não lhe pertencem, porque tanto quanto Isaura, essas ruas a desconhecem. As casas emparelhadas vedam constatações e negam a intenção em saber sobre que distância ela está da sua. Aqui, a casa é só um desejo decodificado e retido entre fachadas de janelas e portas que se repetem por onde Isaura passa. Caminha, mas não sabe para onde ir, porque petrificada em uma única lembrança, a sua memória esqueceu que em volta da sua casa há arredores. E que em todo canto se podem achar referências.

Mas, ao tudo indica, todos os signos que a poderiam levá-la de volta quebraram-se em dissociações. Isaura, ela mesma, é um signo quebrado, como estilhaços de vidro espalhados pelo chão, excluindo inteireza e nunca assentindo perfeita recomposição. Todas os caminhos tornam-na a sua própria encruzilhada. Sozinha, ocorre-lhe um sobressalto e ela então compreende que é só e tão-somente, a sua tristeza, o seu ponto de partida. Porque ela tem sido o único sentimento que a reconhece. À intenção de ir ao seu lugar de chegar, sua própria dor sabota o seu intento, embota a geografia do seu curso, atulha em sua memória, os pontos cardeais e a faz esquecer a sua bússola em um dos bolsos da calça.

Só a tristeza de estar perdida e sem rumo, pode ser maior do que a tristeza que a sobrecarrega. A dor que cura a dor, como antídoto - que é que nem essa coisa de blues -, é quem vai levar Isaura de volta pra casa. Ela entendeu, e por fim, reiniciará o retorno, reencontrará Olavo e olhará de novo para Edite, que surpresa de outra forma de surpresa, verá na mesma Isaura uma Isaura que é outra. Uma Isaura que reconhece todas as ruas de voltar, porque recuperou seus signos e recompôs a memória. 

Ela sabe aonde ir. Aquele disfarce de indiferente que usara por sobre a tristeza, fez a tristeza errar-lhe o caminho até perdê-la de si. Era a tristeza que reclamava reconhecimento e como tristeza queria ser encarada, só para poder daí, trazer Isaura para os seus próprios arredores, arrebatados da memória. Como única companheira, ela sinalizava que as trilhas para a casa, percorriam os caminhos da alegria. A casa, perdida, era ela mesma, Isaura, esquecida de ser feliz. Ela lembrou, finalmente. 

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