Causo minuto: A Bela e A Fera

20/05/2012 12:07 - Welton Roberto
Por Redação

Feio não. Era horrível. Quando nasceu foi investigado como acidente da natureza. Os seis dedos na mão esquerda e as orelhas avantajadas denunciavam que aquela criança tinha pacto com o Tinhoso. O bebê era tão feio que a parteira quando o pegou pelos braços quase desmaiou de susto pensando ser a besta-fera que acabara de nascer. A mãe tentava explicar a feiura devido a uma febre alta que teve quando foi “exigida” pelo marido em noite de lua cheia.


Na infância sofreu todo tipo de gozação. Os apelidos grotescos fizeram-no interromper os estudos ainda no terceiro ano do ensino fundamental. Vivia enclausurado e detestava espelhos. Não conseguia fazer amigos, brincava só. Tinha verdadeira paixão por filmes e era um devorador voraz de livros, habilidade que aperfeiçoou no isolamento de seu quarto.


Na adolescência a solidão lhe perseguiu e ele continuou vivendo no mundo dos livros. Era autodidata em francês, inglês, italiano e espanhol. Lia romances de Shakespeare nas obras originais. Tinha nome pomposo: William Nobre Alcântara. Mas em casa era conhecido por Toró. A feiura ficou pior com as espinhas da puberdade. Todas concentradas no rosto do rapagão que com mais de um metro e oitenta se escondia na timidez e na clausura da ausência de beleza. Mas era um filho carinhoso, dedicado aos pais e à irmã mais nova que, diferentemente dele, era um encanto só. Era a criança mais bela daquele bairro sem sombra de dúvidas. Com tamanha diferença entre os irmãos alguns realmente começaram a acreditar que ele teria sido fruto de um castigo divino, outros que era uma praga do Demo, a mãe continuava a dizer que tudo foi por conta da febre alucinante que teve na noite de lua cheia quando foi “exigida” pelo marido.


Saiu da adolescência e entrou na fase adulta sem nunca ter namorado. Era virgem de tudo. Nunca beijara. Nunca sequer soubera o que era um abraço íntimo do sexo oposto. Embora fosse culto devido aos mais de 10.000 livros já lidos e colecionados, não tinha tido coragem de terminar seus estudos e ficara mesmo detentor de um imprestável primeiro grau incompleto para efeito de arrumar emprego compatível com seu grau de cultura e conhecimento.


Conseguiu depois de muito implorar trabalho em uma funerária e sua função era limpar e maquiar os defuntos para que pudessem estar com “cara de anjo” na hora do velório. O patrão concordou em lhe dar a vaga, pois ele só estaria com os mortos e eles, não conseguiriam se assustar com a bizarra aparência de Toró.


As faxineiras da funerária acreditavam que depois de algum tempo ele passou a falar com os mortos. Aliás, os únicos que conviviam com Toró além de sua família eram eles, os defuntos. Até o seu patrão, Genovildo, não conversava muito com ele para não lhe trazer azar. Acreditava que Toró era um amuleto do Satanás e se desse muita trela para o feioso iria acabar como ele.


As más línguas diziam que de tão horrível ele tinha ressuscitado o Nequinha da Farmácia que acordou no meio do velório depois de ser maquiado por Toró. Foi um rebuliço só.
Trabalhava bem. Conseguia deixar os defuntos com ar de serenidade, bem maquiados e bonitos para a triste e melancólica despedida. Para alguns até recitava poemas na hora do banho. Tinha paciência para deixar cada detalhe perfeito. Realçava as sobrancelhas, escondia as rugas mais aparentes, desenhava em cada rosto a própria aparência de paz e tranquilidade. Era um artesão da morte.


Continuava solitário na vida. E possuía muitos amigos na morte. O tempo passava. Toró continuava seu mister de preparar os mortos para o gran finale da vida: o velório e o enterro. Ficou confidente dos corpos em seus mínimos detalhes. Descobriu que Padre Zeca, moralista e severo possuía várias tatuagens de mulheres nuas em seus braços. Descobriu que o garanhão da rua, o Pedrosa tinha a genitália de uma criança de sete anos de idade, e riu sozinho ao relembrar a sua fama de rapaz pegador. Tudo mentira! Para cada defunto, um dizer especial era escrito por Toró e cuidadosamente colocado sob as vestes que adornariam o corpo no caixão.


Mas foi em uma sexta-feira também de lua cheia que chegara para ele banhar e maquiar a defunta mais bela que ele já teria visto em todos os 10 anos de trabalho na FUNERÁRIA DESCANSE EM PAZ. Tinha pouco mais de 25 anos. Lábios carnudos, olhos grandes, rosto arredondado e cabelos longos, cacheados e pretos. Tatuagem delicada de uma borboleta no tornozelo. Vítima do ciumento marido que lhe dera dois tiros no peito ao pensar em traição. Corpo atlético, pernas grossas, seios fartos.


Toró se encantou. Foi amor à primeira vista. Uma vontade louca e alucinante de tocar de forma diferente a moça defunta foi maior do que ele. Recitou para ela vários poemas de Shakespeare, em inglês. Abraçou-a como se amantes fossem há muito tempo. Lânguida e fria, a defunta teria ali uma manhã de banho de essência de flores, hidratantes, lavou-a retirando cada gota de sangue derramado de seu corpo e odiou intensamente o marido assassino.


De repente, um beijo lascivo tomou conta da mente de Toró que não se contendo apoderou-se da jovem e com ela teve sua primeira e única tarde de amor. A jovem havia morrido por uma suspeita infantil e despropositada de adultério. Era e sempre foi fiel, até antes de seu enterro, pois ali, foi amada como nunca por alguém que vivia entre mortos e se escondia dos vivos. Depois de amar a mulher defunta mais bela que ele já havia beijado e tocado, maquiou-a como uma deusa e surpreendentemente compareceu ao seu funeral onde chorou intensamente no momento do enterro.


As más línguas comentaram o desespero do rapaz e por algum momento a dúvida da traição pairou naquele cemitério.
 

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