Lembro-me que se chamava João José e que era homem de sonhar. Estatura um pouco acima da mediana, cabelos ralos e compridos, um tanto pálido, carregava uma pasta onde guardava seu bem maior. Entrevistei-o várias vezes, aí pela década de 1980, sempre sobre o mesmo tema: o que o movia na vida.
João José era um visionário, um tipo que habita cada cidade do interior, inconformado com o que existe e querendo algo além do que parece possível.
Com o que sonhava João José?
Fazer na sua pequenina cidade, no Agreste, a versão alagoana de Nova Jerusalém. Sentia-se injustiçado porque a "força da grana" não chegava ao seu socorro. Daí, creio, o tanto de ressentimento que carregava em sua pasta, junto aos papéis do seu projeto inatingível. "Se eu tivesse nome, eles davam o dinheiro". Mas tinha apenas aquele "João José" que o acompanhava desde o nascimento.
Vem a seguir o extenso e risível folclore construído pela sua passagem, frequente e sofrida, pelas ruas e praças de Maceió.
Era comum o pito que o eterno sonhador passava nos atores locais, quando com um deles encontrava. Protestava porque não o prestigiavam, um artista da província, "mas se fosse um ‘global' estavam todos batendo palmas na plateia".
- Eu apresentei a Paixão de Cristo, no Teatro de Arena, no dia 31 de dezembro, e não tinha ninguém para assistir.
Feita a reclamação, contava a sua via-crúcis, encenando a mesma peça, de cidade em cidade, "levando arte para o povo" e fazendo dos habitantes locais, também eles, artistas, assim como o próprio João José:
- E ainda tem uns cabras safados que fazem molecagem, não respeitam nem a história de Jesus. Eu boto alguns no papel de centurião romano, e o que é que eles fazem? Cachorrada! Eu aviso: isso é teatro. O chicote é só pra parecer que está batendo, não é de verdade. Mas, não, eles não têm pena.
Quase em lágrimas, continua:
- Uma vez, eu levei tanta chicotada desses animais, que no final eu estava todo roxo. Eu dizia baixinho: "é de faz-de-conta". E eles: tome, tome, tome!
Era conter o riso, que o homem não estava para brincadeira. Resmungava, o João José, em protesto contra os atores locais mais conhecidos:
- Vocês nunca quiseram fazer arte para o povo. Eu faço, e o que é que ganho? Não consigo um tijolo para o meu teatro ao ar livre. A coisa mais linda do mundo! O de Pernambuco não chega nem aos pés.
E continuava, o nosso artista, a narrar as agruras de quem sempre tentou dar um momento de glória aos seus colegas amadores interioranos:
- Um dia, no momento da crucificação, a música bonita tocando no meu sonzinho, enquanto o pessoal levantava a cruz de madeira com Jesus amarrado, que era eu, né? De repente, senti que o fraldão que estava usando se abriu um pouco na parte de baixo. Foi um sufoco! Eu espremia as pernas, mas sentia aquele ventinho batendo nas partes. Que desgraça!
É claro, qualquer um ficava ansioso, aguardando o desfecho da história - ou da peça, o que no fim dava no mesmo. Era um tristonho João José que dava o toque final na sua pequena tragédia pessoal:
- Menino é uma raça que não presta. Eu de olho meio aberto, meio fechado, vendo a plateia só pelo cantinho, e um desses pestes virou para a mulher que estava do lado dele e disse: "Mãe, oia as bolas de Jesus Cristo". Aí não teve jeito, eu chorei de verdade.
Perdi João José de vista, com o tempo. Mas o seu legado está na pequena Craíbas, conhecida hoje pela encenação, a cada ano, do espetáculo da Paixão de Cristo no seu surpreendente teatro ao ar livre.
Ave, João José!







