Ser nordestino é carregar na alma a força da ancestralidade e da criatividade de um povo que nunca desiste. Neste 8 de outubro, dia de celebração da cultura nordestina, essa identidade ganha forma com o cuscuz de arroz de Penedo, patrimônio imaterial da cultura alagoana. A massa feita de grãos de arroz moídos artesanalmente, transformados em farinha e cozidos com leite de coco, é um dos grandes símbolos da culinária regional, que atravessou gerações e pelas mãos do chef Rodolfo Novais se transformou em um negócio cheio de sabor e propósito.

“Sou filho, neto e bisneto de fazedoras de cuscuz de arroz. Essa história começa com minha bisavó Pureza, que não cheguei a conhecer, mas que carrego comigo como força e inspiração. Sou a quarta geração da família que mantém essa tradição, agora de uma maneira mais comercial, para que nunca se perca”, afirma.

O cuscuz de arroz surgiu como uma alternativa de refeição barata, aproveitando a sobra da produção de arroz da região, que não tinha valor comercial e que, por conta disso, por vezes era doado às famílias mais pobres. O arroz quebrado, tipo C ou quirela, como também era conhecido, se transformou em um prato simples, mas que temperado com as memórias afetivas, segue aquecendo o estômago e abraçando os corações alagoanos.

Dos trocados ganhos quando criança ao empreendedorismo

Criado com o cuscuz, Rodolfo cresceu em meio a mulheres que faziam da iguaria fonte de sobrevivência. Além da bisavó Pureza, a tradição foi passada para avó Jaci, a tia Nilde, a mãe Rosilene e, finalmente, para ele. Entre as lembranças da infância, a memória de manusear o moinho de arroz junto com os primos para a tia que preparava a receita para vender nas festas da cidade está entre as mais queridas. A ajuda rendia trocados que ele usava para ir ao parque de diversões.

Mas, na juventude, o chef não imaginava que a tradição familiar fosse se transformar em fonte de renda. Tanto que se mudou para Maceió, para fazer faculdade de Química. Tudo mudou em 2016, quando o Rio de Janeiro sediou as Olimpíadas. Apaixonado por esportes, decidiu que juntaria dinheiro para assistir aos jogos. Foi encorajado pela mãe para realizar o sonho, que sugeriu ainda que ele passasse a vender cuscuz de arroz em Maceió para custear a viagem.

Com a receita da mãe e a ajuda de uma tia, que mantinha contato com outros penedenses em Maceió, passou a vender cuscuz de porta em porta para os conterrâneos que sentiam saudade de casa. Conseguiu juntar dinheiro suficiente para realizar o sonho, mesmo enfrentando alguns perrengues. “Não tinha lugar para dormir, então dormia no aeroporto. Mas valeu a pena mesmo assim. Quando voltei, estava um pouco desacreditado da faculdade que eu fazia e entendi que o cuscuz podia virar um negócio. Pouco tempo depois comecei em um pequeno trailer na praça do Santo Eduardo”, conta.

Para conquistar os maceioenses que não conheciam o cuscuz de arroz, ele apostava no sabor. “Eu oferecia e dizia que era por minha conta e que, se eles não gostassem, não precisavam pagar. E assim fui conquistando e fidelizando os clientes. Até o momento que percebi a necessidade de abrir um espaço físico e, principalmente, de voltar para a minha cidade”, declara, se referindo ao seu empreendimento A Carroça, na Ponta Verde, em Maceió, e a Vila Dão Pêdu, em Penedo.

Rodolfo Novais transformou a receita da bisavó em um negócio que celebra sabor, memória e orgulho nordestino. Foto: Kelvin Gomes

 

Receita tombada e inovações para agregar valor

Enquanto tocava seus negócios, Rodolfo mergulhava nos registros históricos locais para compreender a origem da receita típica, que é conhecida também em outros municípios do Baixo São Francisco. A pesquisa histórica acabou se tornando projeto de lei e, no mês de julho, o cuscuz de arroz de Penedo foi tombado como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado de Alagoas. “Ainda hoje, se você vai conversar com os mais antigos de Penedo, eles relatam memórias que têm do pai indo para a feira de manhã buscar o cuscuz para a família tomar café. Ouvi esse relato de várias pessoas, que iam até a barraquinha que a minha bisavó tinha na feira, ao lado do mercado da carne, para comprar o cuscuz. Minha bisavó Pureza vendia lá e também entregava nas pousadas”, relata.

A receita também teve poucas alterações ao longo do tempo. Rodolfo ainda utiliza o arroz quebrado, que é umedecido – ou “enxombrado”, termo que os ancestrais dele usavam – antes de passar por um moinho artesanal, que transforma a massa em uma farinha fina, que é misturada ao bagaço de coco, também produzido artesanalmente, e levada ao fogo em banho-maria. Depois de pronto, é regado com leite de coco, conferindo um sabor único e levemente adocicado.

Apesar de não haver espaço para alterar a receita ou o formato do prato, feito em uma cuscuzeira adaptada para cozinhar quatro porções individuais de uma vez, o chef buscou inovar nos acompanhamentos, para garantir novidades e atrair o público. Desde as combinações tradicionais, com ovo frito ou frango, carne do sol e parmesão, ou ainda versões doces, o prato caiu no gosto dos nordestinos.

“Não vendemos apenas comida. Vendemos história, memória, emoção. O cliente vem pela curiosidade e volta porque se identifica. Quem prova revive memórias afetivas. Muitos clientes dizem que ao comer o cuscuz relembram a infância, seus antepassados. Então transformar a receita em patrimônio é a garantia de que essa tradição não vai se acabar”, destaca.

Feito com arroz quebrado e leite de coco, o cuscuz de arroz de Penedo é tradição passada de geração em geração. Foto: Kelvin Gomes

 

Orgulho de ser nordestino

Em sua trajetória, Rodolfo reconhece que o respeito à ancestralidade e a garra para enfrentar os desafios foram fundamentais para chegar onde chegou. “Nordestino não desiste. Tem sangue nas veias e vontade de fazer acontecer. Fico arrepiado só de falar. A gente encara os empecilhos como degraus, como o cuscuz, que a gente começou como algo pequeno e que hoje é patrimônio do nosso estado”, ressaltou.

Para conquistar o reconhecimento, o chef contou com uma ajuda fundamental desde a época em que tinha apenas um pequeno trailer no Santo Eduardo e uma ideia na cabeça. “O Sebrae foi o pontapé inicial do projeto e com a parceria dele fomos evoluindo do trailer para um restaurante. Depois, quando resolvi voltar para Penedo, também tive muito apoio, principalmente nesta área do turismo. A parceria foi fundamental para que a gente consiga executar os processos e evoluir”, explica.

Para o Sebrae Alagoas, o cuscuz de arroz representa um elo entre passado e futuro, tradição e desenvolvimento. De acordo com Pauline Reis, gerente da unidade regional de Penedo, o trabalho de empreendedores como Rodolfo reforça a importância de valorizar o que é autêntico e genuinamente nordestino. “O cuscuz de arroz é mais do que um prato tradicional, é uma expressão viva da identidade do povo penedense e da força da cultura nordestina. Acreditamos que a inovação também nasce da tradição. Temos incentivado aqui na região empreendimentos que unem cultura, criatividade e sustentabilidade”, destaca.

Ela também ressalta o impacto simbólico e econômico do reconhecimento da iguaria como patrimônio cultural. “O reconhecimento do cuscuz de arroz como patrimônio imaterial foi, sem dúvida, um marco para todos nós que acreditamos no potencial do turismo, da gastronomia e da economia criativa de Penedo e do nosso estado”, afirma.

 

Foto de Capa: Kelvin Gomes