Passei a infância e a adolescência ouvindo, repetidamente, de todos os que nos conheciam, que eu era “a cara” do meu avô materno. Só na idade adulta é que pude enxergar que as aparências enganaram e muito aos que enxergavam a mencionada semelhança.
Meu avô era um sujeito longilíneo, de traços afilados, inclusive com seu nariz grego. O meu é nitidamente negroide, de um afrodescendente, como deve se dizer hoje para evitar altercações desnecessárias.
E os nossos comportamentos não poderiam ser mais diferentes. Seu Antenor Montenegro adorava falar em público, uma das minhas fobias prediletas, além de ser um conhecido, digamos, conquistador, o que não caberia em alguém como eu, até por falta das qualificações necessárias para tal – por fora e por dentro.
O que tínhamos de parecido?
Talvez a curiosidade, o que alimento até os tempos de hoje. Lembro-me do meu avô estudando francês, sozinho, carregando o livro debaixo do braço, para lá e para cá, já passado dos 70 anos. Como traço físico, acrescente-se aquilo que foi determinante para que as pessoas que nos conheciam tivessem a sensação de que eu seria a nova versão do seu Antenor: o jeito de andar, em decorrência da corcunda que nos era comum e que, por enquanto, ainda carrego.
Não tivemos muito convívio, e hoje desconfio que meu avô não tinha muita inclinação para lidar com crianças. É verdade que na minha infância, de quando em vez, ele me levava ao Grupo Escolar Fernandes Lima, ali na Rua do Sol, onde estudamos todos os filhos de seu Luiz Mota e dona Lúcia (eram tempos de “primário”).
Numa dessas idas, ele sempre muito apressado, andando com rapidez, eu me descuidei e, por pouco, não fui atingido por um carro, ao atravessar a Ladeira do Brito. O susto foi grande, principalmente para quem tinha de oito a nove anos e detestava ser chamado à atenção – e até hoje é assim comigo. Como todo avô que se preze, seu Antenor aproveitou a deixa, foi certeiro e definitivo:
- É melhor perder um minuto na vida do que a vida num minuto.
É verdade: a frase virou um lugar-comum nas campanhas oficiais e na educação do trânsito, mas era a primeira vez que a ouvia, e ela me provocou tal impacto – e vá saber lá o porquê – que eu nunca mais a esqueci, nem mesmo o instante e a circunstância em que me foi dita.
Essa memória me chegou, na semana que passou, quando tive de enfrentar a Fernandes Lima, o que evito cada vez mais nos últimos anos – e isso me faz um bem imenso. O comportamento de motoristas de veículos os mais diversos, buscando um pedestre como alvo preferencial, me dá a impressão de que se Dante conhecesse carros e trânsito, os teria incluído no seu livro sobre o inferno (reparando bem, ainda é possível atualizá-lo).
Se pudéssemos capturar os olhares e a respiração de quem conduz um veículo pelas nossas avenidas, no cotidiano, poderíamos mais facilmente entender o que é o Homem Primordial, esse personagem que ganhou dimensão no Paleolítico e nunca mais nos abandonou.
Peço licença para me jactar, em pleno domingo: eu sou um motorista cada vez mais tranquilo e sem pressa. Entendi, e tomara que em idade ainda aproveitável, que o trânsito é o último lugar onde se pode e se deve ganhar tempo. Aquela história: quer chegar cedo, saia antes.
Afinal, nem os gregos criaram o mito de um Ícaro sobre rodas, rente ao chão, mas se ele existisse, correria o risco de ter o mesmo destino do personagem alado.
Ricardo Mota