Em meio aos desafios enfrentados por comunidades quilombolas no sertão alagoano, a Fiscalização Preventiva Integrada do Rio São Francisco (FPI do São Francisco) realizou, nesta terça-feira (19), visitas às comunidades Chifre de Bode e Poço do Sal, no município de Pão de Açúcar, região do Médio Sertão. A equipe de Comunidades Tradicionais e Patrimônio Cultural (CTPC) foi ouvir as comunidades, identificar demandas urgentes e acompanhar a efetivação de políticas públicas essenciais, como saúde, educação, território e serviços públicos.
Educação: Obras paralisadas e transporte deficitário

A área rural onde estão localizadas as comunidades quilombolas abrange mais três povoados que dependem da mesma estrutura educacional e que poderia ser melhor servida se as obras da escola quilombola localizada no quilombo Chifre de Bode, vizinho ao quilombo Poço de Sal, não estivessem paralisadas desde 2016. Cada povoado possui um pequeno prédio para escola e cada unidade oferece aulas para um determinado grupo de alunos de séries diferentes, sendo necessário o deslocamento desses alunos entre os povoados.
No entanto, o transporte escolar é considerado crítico para as comunidades, apenas as vans prestam um bom serviço, mas o único ônibus disponível frequentemente quebra, atrasa ou deixa os alunos sem meio de chegar à aula, como aconteceu recentemente por quatro dias. Frequentemente, os alunos que dependem do único ônibus escolar disponível chegam atrasados em suas aulas.

A situação da escola quilombola com obras paralisadas há quase 10 anos está sendo acompanhada pelo Ministério Público Federal em procedimento específico e aguarda manifestação oficial do município sobre a repactuação do financiamento federal. Segundo informações do prefeito Jorge Dantas à Elis Lopes, da Rede Mulheres de Comunidades Tradicionais, o município já aderiu à repactuação junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, e a obra da escola será retomada. Segundo o gestor, o processo de licitação está em andamento e a previsão para conclusão das obras é até janeiro de 2027.
Para o procurador da República Eliabe Soares, titular do Ofício de Comunidades Tradicionais no MPF em Alagoas, “a nova escola representará um avanço importante para garantir acesso à educação de qualidade a crianças e adolescentes quilombolas, proporcionando a preservação da cultura e da tradição e estimulando que os quilombolas do futuro persistam na luta pela memória de seu povo”.
Saúde e saneamento

A situação do atendimento de saúde chocou os participantes do programa que constataram as péssimas condições dos equipamentos dispostos na “salinha” de atendimento, nos fundos da associação de moradores da comunidade Chifre dos Bodes. Não há postos estruturados em nenhuma das comunidades, sendo os atendimentos realizados em espaços improvisados ou em povoados vizinhos, como num bar, em Poço Grande. Apenas medicamentos básicos estão disponíveis, e emergências exigem transporte pago pelos próprios moradores.
Para Elis Lopes, coordenadora da Rede Mulheres de Comunidades Tradicionais, a situação de acesso à saúde, especialmente para as mulheres, precisa ser solucionada com urgência. “Ouvimos relatos importantes de deficiência do poder público no acompanhamento da saúde dessas mulheres. Apesar de serem atendidas a cada 15 dias por uma médica

acompanhada de equipe que parece adequada, não há estruturas mínimas de higiene e segurança para esses atendimentos. A mesa ginecológica está totalmente enferrujada, as mulheres não possuem acompanhamento pré-natal eficiente e precisam gastar recursos que não possuem para se transportarem para atendimentos médicos e realização de exames na rede privada por falta de acesso ao SUS”, destacou Elis Lopes.
As moradias possuem água encanada, mas o abastecimento é irregular, especialmente nos imóveis em terrenos mais elevados. A coleta de lixo também é precária, dependendo da colaboração dos próprios moradores e sem previsibilidade.
Regularização fundiária e segurança
Ângela Gregório, antropóloga e chefe da Divisão de Territórios Quilombolas do Incra, em Alagoas, esclareceu à população que o processo de titulação de terras quilombolas é longo e burocrático, mas essencial para garantir segurança jurídica, proteção do território e acesso a políticas públicas. Reforçando que o processo não precisa ser traumático para os imóveis vizinhos, e que todo o processo é feito da forma mais responsável prevista em lei.
O Incra reforçou que a titulação é coletiva e impede a entrada de terceiros e a venda individual de lotes. A decisão sobre o uso do território é coletiva, e a comunidade define os passos conforme as dificuldades surgem, garantindo proteção e preservação da área.
Agricultura e subsistência
A agricultura familiar, principal atividade econômica das comunidades, depende das chuvas e do acesso a sementes, insumos e máquinas agrícolas, que são disponibilizados por entes públicos. Ambas as comunidades relataram dificuldades em realizarem o CAF (Cadastro da Agricultura Familiar), inclusive com relatos de discriminação, sendo que em Poço do Sal, a situação pareceu ainda mais difícil para os agricultores.
O cultivo inclui feijão, milho e palma, mas mudanças climáticas comprometem a produção, o que levou à erradicação do plantio de mandioca na região, tornando os programas sociais uma alternativa importante de sustento.
Trabalho Escravo

As visitas que a equipe CTPC tem feito, no âmbito da 15ª etapa da FPI em Alagoas, tem reforçado que as comunidades têm sido geridas por mulheres, geralmente.
Nos quilombos Chifre do Bode e Poço do Sal, as mulheres foram a maioria das presenças nas reuniões e revelaram que os homens, adultos e jovens, em geral, estavam em viagens para trabalhar em colheitas de café, laranja, limão e cana, principalmente nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais.
Sobre o tema, a Rede Mulheres de Comunidades Tradicionais, idealizadora do projeto Ominira Liberdade, aproveitou para orientar as famílias desses trabalhadores sobre mecanismos de segurança e garantias para evitar que sejam cooptados por exploradores de trabalhadores, em situação de escravidão moderna.

A equipe de Comunidades Tradicionais e Patrimônio Cultural é coordenada pelo antropólogo do MPF Ivan Farias e composta também por técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Fundação Cultural Palmares, Secretarias de Estado de Direitos Humanos (SDH) e de Meio Ambiente Recursos Hídricos (Semarh), RMCT e ONG Agendha – Assessoria e Gestão em Estudo da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia.
O trabalho conjunto busca fortalecer o diálogo com as comunidades, garantir o respeito a seus direitos constitucionais e promover o acesso a políticas públicas essenciais, além de orientar sobre regularização fundiária e fortalecimento da organização comunitária.