“Ou ele sai ou ela sai.” Foi com essa frase, carregada de transfobia, que Amanda Porto (nome fictício), estudante do 3º ano do Ensino Médio, foi constrangida ao tentar usar o banheiro feminino em uma escola pública de Alagoas.
O episódio não é isolado. Em pleno Mês do Orgulho LGBTQIAPN+, relatos como o de Amanda expõem como o preconceito ainda marca a rotina dos estudantes nas instituições de ensino do estado — espaços que deveriam garantir segurança, acolhimento e respeito à diversidade.
Enquanto alunos denunciam discriminação, desinformação e abandono institucional, educadores apontam a urgência de políticas efetivas de combate à LGBTfobia no ambiente escolar.
A violência sofrida por Amanda e sua amiga começou com a tentativa de usar o banheiro feminino. “Fomos abordadas de forma agressiva e discriminatória. As falas foram ofensivas e constrangedoras: ‘Ou ele sai ou ela sai’ e ‘menina que não é menina sai’”, relata.
A amiga de Amanda é uma menina cisgênero — ou seja, cuja identidade de gênero corresponde ao sexo atribuído no nascimento —, o que evidenciou ainda mais o despreparo da escola para lidar com a diversidade. A situação se agravou quando ambas procuraram a direção: segundo Amanda, a resposta foi igualmente discriminatória.
“A diretora afirmou que, após reunião com o conselho escolar, mulheres trans só poderiam usar o banheiro feminino quando não houvesse meninas cis presentes. Depois ainda disse: ‘Mulher é mulher de verdade’”, conta a estudante.
Sem respaldo, as alunas buscaram apoio com uma professora, mas encontraram contradições. “Ela nos disse que desconhecia qualquer reunião com esse teor. Mesmo assim, a direção voltou e seguiu nos constrangendo.”
Além disso, as estudantes foram vítimas de desinformação jurídica: receberam a falsa orientação de que o uso do banheiro por mulheres trans só seria permitido após cirurgia de redesignação sexual — algo que não encontra respaldo legal —, e ainda foram alvo de comentários sobre suas orientações sexuais, completamente fora de contexto.
“Fiquei extremamente abalada, e minha amiga passou semanas sem conseguir sair de casa. A escola, que deveria ser um lugar de acolhimento, se tornou um ambiente hostil e traumático”, desabafa Amanda.
“A escola deve ser espaço seguro”: o que diz quem educa
Para o professor Roniel Conceição, educador da rede pública e estudante de Pedagogia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), casos como o de Amanda mostram a urgência de repensar o papel da escola.
“A escola não pode ser um espaço de exclusão. Ela é central na formação de valores e no respeito à diversidade. Promover o acolhimento é parte do processo educativo”, afirma.

Roniel defende uma série de ações práticas que as instituições podem adotar:
- Implementação de políticas internas contra a LGBTfobia, com apoio de grêmios estudantis e movimentos sociais;
- Inclusão da temática LGBTQIAPN+ nos currículos escolares de maneira transversal e interdisciplinar;
- Campanhas educativas ao longo de todo o ano, e não apenas em datas simbólicas;
- Criação de protocolos claros para lidar com casos de violência e preconceito.
“É preciso garantir que toda a equipe escolar — de professores a porteiros e merendeiras — receba formação continuada sobre diversidade, identidade de gênero, orientação sexual e direitos humanos”, destaca.
Resistências e barreiras
Apesar das propostas, Roniel reconhece que os desafios são grandes e complexos. Ele aponta como principais entraves:
- Resistência de parte da comunidade escolar, muitas vezes pautada por crenças religiosas ou visões conservadoras;
- Ausência de formação adequada para profissionais da educação sobre gênero e sexualidade;
- Falta de apoio institucional, tanto na gestão escolar quanto em secretarias de Educação;
- Intimidação e medo de retaliação por parte de alunos ou professores que tentam promover mudanças.
“Há escolas que só tratam do tema após casos graves. A pauta da diversidade não pode depender de crises para ser discutida”, avalia o professor.
Iniciativas e possibilidades: onde a mudança começa
Mesmo diante dos retrocessos, há iniciativas em curso que mostram caminhos possíveis. Algumas escolas municipais já adotam termos mais inclusivos como “Dia da Família” no lugar de “Dia das Mães” e “Dia dos Pais”. Outras organizam rodas de conversa, oficinas temáticas e exibição de filmes para estimular o pensamento crítico.
“Trabalhar com metodologias interdisciplinares é fundamental. A diversidade deve estar presente na literatura, na história, nas artes, em tudo. E isso deve começar na infância”, afirma Roniel.
Além disso, Alagoas possui desde 2018 uma lei que garante o uso do nome social por estudantes trans e travestis na chamada e em documentos escolares. No entanto, a medida ainda encontra resistência e muitas vezes é ignorada.
“É necessário fazer valer a lei e garantir ações afirmativas como campanhas antidiscriminatórias, canais de denúncia e acompanhamento psicossocial”, reforça.
O que diz a Seduc
À época do caso, a Secretaria de Estado da Educação (Seduc) emitiu nota, informando que rechaça toda e qualquer forma de preconceito e discriminação, já desenvolvendo protocolos de prevenção e enfrentamento às violências no ambiente escolar, a exemplo do bullying, a fim de transformar as unidades da rede estadual em ambientes mais seguros e inclusivos.
“Entre os protocolos estão o antirracista, que combate o racismo, promove a equidade e fomenta a cultura da paz, e o de prevenção e enfrentamento à LGBTfobia, que tem a chancela de instituições como o Ministério Público Estadual, contemplando não apenas ações de sensibilização da comunidade escolar, mas, também, a formação continuada dos profissionais de educação”, informou a pasta.
Com relação ao episódio, a Seduc havia reunido a equipe gestora da unidade, para implementar medidas de proteção aos estudantes trans, identificando e prevenindo ocorrências dessa natureza. O uso do banheiro feminino pela estudante também foi autorizado.