Foi com surpresa e preocupação que li a notícia sobre o procedimento cirúrgico a que Chico Buarque foi submetido na semana passada. Algo nem tão grave, como garantiu o médico Paulo Niemeyer Filho, cujo pai, morto em 2014, foi um dos pioneiros da neurocirurgia no Brasil - até se tornar uma lenda. Mais: era irmão do não menos celebrado Oscar Niemeyer.

É claro que a velhice e suas complicações chegam para todos, e há quem considere esse “destino” como algo bem melhor do que a alternativa a ele (“A velhice não é uma batalha; é um massacre” – Philip Roth).  

Que seja!

Chico completará 81 anos no próximo dia 19 e há de comemorar a data pelo tanto que a vida já lhe deu - e a nós, por extensão -, mas não como um novo nascimento: ninguém renasce depois de oito décadas de existência. Imagino que o autor de incomparáveis canções que nos fazem pensar e nos emocionar ao mesmo tempo – e que nunca foi um nefelibata, uma ideia tola que alimentamos sobre os poetas - trata a morte com a mesma naturalidade que sua poesia retrata a vida, e ainda há de fazê-lo por um bom tempo.

Chico, criador raro na Natureza dos homens, sabe que as palavras, principalmente se elas ganham o direito de entrar no mundo da poesia, nunca brotam exclusivamente da emoção à flor da pele. E ele, como os cegos, sempre pôde “ver na escuridão” onde elas, as palavras, estavam escondidas.

Numa dessas crônicas domingueiras, com as quais divido reminiscência com pacientes e tolerantes leitores (as), já revelei que o primeiro disco que comprei com o parco dinheirinho de que dispunha na minha adolescência foi exatamente “Construção”, em 1971. Cena inesquecível para mim: corri pelas ruas do entorno da velha Buarque de Macedo, o meu troféu na mão, exibido ao alto, como a grande conquista material/espiritual da minha existência até então.

Dizer que Chico já conquistou a condição de imortal é repetir o senso comum, mas poucas coisas são tão verdadeiras na cultura brasileira quanto essa óbvia conclusão. Mas aqui, ao longe, torço para que ele ainda estenda por muitos anos o seu talento criativo, com a delicadeza e capacidade intelectual de um filho musical de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (dispensa-se exame de DNA).

A geração dos 80, amada por todas as que se seguiram, também traz outros grandes artistas brasileiros que já nos acenam suas despedidas, avisos de que também eles vivem o destino comum dos homens e mulheres. Alguns já abandonaram os palcos, caso de Milton Nascimento; outros nos dão sustos pelas entradas em hospitais ou pelo quadro de saúde publicado.

Paulinho da Viola (82 anos) foi internado, em 2023, para a retirada de um tumor no aparelho digestivo e vai tocando a vida com mais vagar, como o corpo já lhe cobra (e ainda sofre com o Vasco da Gama); Gilberto Gil (82 anos) se cuida bastante, disso se sabe, mas já deu sinais de que o tempo/corpo também lhe cobra sabedoria e poesia, antes de ir, e já teve de se submeter a tratamentos rigorosos, o que inclui quimioterapia. 

Na semana que passou, eu ouvi mais uma vez “Oitenta”, o álbum comemorativo de Edu Lobo (82 anos), o compositor que Tom elegeu como sua cria e herdeiro musical e que começou sua arte numa parceira com Vinícius de Moraes - “Só me fez bem”. Com o Poetinha, o filho do jornalista e também compositor Fernando Lobo, iria ganhar o 1º Festival Nacional de Música Popular Brasileira, em 1965, com “Arrastão”. Para quem não lembra, a música que revelou a voz incomparável de Elis Regina. Ela, aliás, teria chegado aos 80 em março deste ano, não fossem as dores da sua alma. Edu, lembremos, já foi nocauteado por um aneurisma quando tinha 60 anos, e se recuperou como pôde.

Tom Jobim morreu com a idade que tenho hoje: 67 anos, em 1994; Vinícius de Moraes se foi um ano mais moço, em 1980, deixando uma descendência artística rara em qualquer lugar do planeta, além da própria imortalidade – o que vale para ambos. Eles estão ainda entre os compositores mais regravados da história da MPB, e não correm o risco de perder esse troféus.

Meu neto João Vicente, de seis anos, na sua inocência curiosa, perguntou-me certa feita se eu iria virar “uma estrelinha”, essa forma suave de tratar a morte para e com as crianças.

Respondi-lhe que sim, com humor, mas sem maiores detalhes. Espero, entretanto, que ele descubra, na longa jornada que tem pela frente, quando olhar para cima, nas noites do Brasil, que algumas estrelas/estrelinhas brilham bem mais do que outras (estarei entre estas últimas).

E que ele, de rara sensibilidade e agudeza de sentidos, mapeie o seu céu particular, enxergando onde brilham aquelas que são imprescindíveis.