Foi pungente para quem acompanhou de perto, ou leu depois sobre o tema, a luta de Nara Leão contra o câncer que a levou à morte, em 1989. A musa da bossa nova, jeito doce, e que tinha a sua graciosidade no seu jeito um tanto sem-graça, era uma guerreira. Mas assim tinha sido em toda a sua vida (e nem precisava enfrentar as feras, se optasse por viver de um jeito fácil e agradável).
A doença, impiedosa, a levou a passar vexames no palco: o tumor no cérebro lhe fazia esquecer as letras, ou simplesmente deixava-a atônita, sem saber onde estava ou o que fazia. Nara brigou até o último sopro de vida.
Não podia ser diferente com aquela menina de classe média, tão identificada com a bossa nova, que diziam ter nascido - com um tanto de exagero - em seu apartamento em Copacabana. Pois bem, num belo dia de outubro de 1964, Nara Leão bradou:
- Chega de bossa nova. Chega disso, que não tem sentido. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero um samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para um grupinho.
Era um grito de guerra aos antigos parceiros, namorados e amigos, que, por sinal, admiravam muito mais a beleza deslumbrante de então da sua irmã Danuza. Rompidas as relações com a turma do “amor e da flor”, Nara foi cantar em outro lugar. Os novos companheiros: Zé Kéti e João do Vale, com quem levou ao palco o antológico show “Opinião”, no teatro alugado ao senador Arnon de Mello – ele mesmo.
Foram meses de sucesso, entrando 1965 a formar imensas plateias que não se cansavam de ouvir “a música do povo” e os seus protestos (Podem me prender/Podem me bater/Que eu não mudo de opinião). Por trás da iniciativa, gente da melhor qualidade intelectual e de combate. Tudo o que aquela mocinha, nascida em 1942, em Vitória (ES), pretendia: afiar suas garras contra a ditadura militar que se apoderou do Brasil em primeiro de abril de 1964. Nara queria briga, e o palco passou a ser seu ringue.
Na convivência com a turma do “Opinião”, Nara conquistou a paixão do poeta Ferreira Gullar, então casado com outra militante da causa arte versus repressão – Tereza Aragão. O vate maranhense cercou-a de gentilezas e de versos – seus joelhos viraram um símbolo de beleza -, desistindo quando descobriu que sua musa havia escolhido Cacá Diegues para ser seu par. Para ela, escreveu Gullar no livro Dentro da noite veloz:
Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro, mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando
Era o adeus a mais um amor de poeta, sempre marcado pelo encontro e pela dor da despedida.
Mas antes que ela viesse a arrebatar definitivamente o país, no II Festival da Record (1966), cantando a singela "A banda", com Chico Buarque de Hollanda (o autor), Nara já havia encantado outro grande poeta, ao afrontar a fera de botina. Foi numa entrevista ao Diário de Notícias, em maio daquele ano. Pediu o afastamento dos militares, punição rigorosa para eles – com a devida cassação dos direitos políticos dos golpistas – e afirmou o que seria então indizível para qualquer cidadão medianamente ajuizado: defendeu o fim das forças armadas.
- Não servem para nada, como foi constatado na última “revolução”, quando o deslocamento das tropas foi prejudicado por alguns pneus furados. Numa guerrilha moderna, o nosso exército não serviria para nada.
Satisfeito (a)? Ela, não. “Quem está mandando é que deveria ser cassado”. Nascia, ali, mais uma crise militar entre os duros e os não tão duros. Conta-nos o jornalista Sérgio Cabral (o pai), em sua deliciosa biografia da cantora, que a expectativa do meio artístico e intelectual passara a ser quanto ao “tamanho” do castigo que os de farda iriam lhe impingir. Era questão de tempo, pouco tempo.
O debate interno nas forças armadas foi intenso, na sua troca de relatórios, memorandos e sugestões castrenses. Impune é que Nara não poderia ficar. Ela sabia o alcance das suas palavras, mas não demonstrava nenhuma intenção de voltar atrás, corrigir o que seria um mal-entendido, nada disso. Nara era, mais do que nunca, Leão.
Mas eis que surge a autoridade do poeta maior: Carlos Drummond de Andrade. Usando as armas que possuía no seu imensurável arsenal, e no meio da polêmica que ganhou o mundo, mineiramente, ele dirigiu-se em versos ao marechal Castelo Branco - o primeiro de uma longa série de ditadores que nos infelicitaram por vinte longos anos. No Correio da Manhã, numa edição de domingo, o mestre da melhor poesia brasileira apelou:
Meu honrado marechal,
dirigente da Nação,
venho fazer-lhe um apelo:
não prenda Nara Leão.
...Ah, marechal, compre um disco
de Nara, tão doce, tão
meigamente brasileira,
e remeta ao escalão.
...Ao ouvir o que ela canta
e penetra ao coração,
o que é música de embalo
em meio a tanta aflição.
O gabinete zangado
que fez um tarantantão
denunciando Narinha,
mudava de opinião.
...Nara é pássaro, sabia?
e nem adianta prisão
para a voz que, pelos ares
espalha a sua canção.
Não, não foram as flores vencendo os canhões, mas a poesia, que é capaz, sim, de mobilizar milhões e derrotar a fúria dos exércitos.
- Vale a pena comprar qualquer barulho para ganhar um poema desses.
Foi assim, serenamente e feliz, que a livre e libertária Nara agradeceu ao poetinha.
(Esta semana matei um pouco da saudade da musa da bossa nova.)

Ricardo Mota