Tenho entre os meus preferidos - e bem-cuidados - dezenas de CDs de violonistas brasileiros, fantásticos artistas que ganharam o respeito e a admiração do mundo, ainda que não muito festejados por aqui. 

Fato inegável é que se não fosse o violão, arrisco, a música brasileira não teria a grandeza alcançada - uma das mais belas e múltiplas entre todas as nações. Mas nem sempre o instrumento de rica e disponível harmonia e que goza hoje de maior popularidade no Brasil foi bem-visto pela nossa elite - intelectual e/ou econômica.

No início do século XX, quando estava em gestação o que veio a se chamar MPB, o violão em mãos negras e mestiças era considerado um marginal brasileiro. Até então, não era acessível às camadas mais pobres da população, porque custava caro para os padrões da época. 

A polícia buscava nas pontas dos dedos dos andarilhos noturnos os calos que sinalizavam estar ali um usuário daquela "coisa de capadócio, de desocupado, da negralhada", no dizer irônico e debochado de Donga, sambista que gravou seu nome na história da mais querida de todas as artes no Brasil.

Mesmo que os mais aquinhoados já admitissem em suas salas compositores - ao violão - de músicas que as ruas cantavam, estes eram chamados de "serenateiros", para que fossem diferenciados dos seresteiros, sobreviventes até os dias de hoje. 

Aqueles sumiram no desmanche de mais um preconceito estúpido - como todos os outros. Afinal, "Esse bojo prefeito/ Que trago junto ao meu peito" (Cartola, em Cordas de aço) virou o instrumento oficial da Música Popular Brasileira.

Catulo da Paixão, oriundo da classe média, era um dos assimilados nos endereços chiques, mas não foi por isso que ficou conhecido na música brasileira - é um dos autores de Luar do Sertão, entre outras. Deve-se a ele, também, a conversão do violão em instrumento socialmente aceito, deixando a condição de maldito. Levou-o, pela primeira vez, ao antigo Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro (em 1908), numa corajosa e arriscada iniciativa do maestro Alberto Nepomuceno. A partir de então, o marginal entrou na nobreza.

O formato? 

"O corpo de uma mulher", haveria de descobrir, sem contestação, o poeta Paulo César Pinheiro (Violão). 

As cordas? 

Feitas de "raios de lua", prosseguiu na descrição do instrumento um dos mais prolíficos compositores do nosso cancioneiro.

A essas formas sensuais se rendeu até mesmo nosso "maestro soberano", Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Inventivo pianista, que mandava muito bem com o seu pinho, ele cantou "um cantinho, um violão" (Corcovado) como um instante único na vida, de rara felicidade. 

Tom, um dos pais da bossa nova, ganhou até a parceria na fecundação de um dos mais festejados movimentos da MPB de um violonista chamado João (Gilberto), que, com sua batida inovadora e sincopada deu forma final à música sofisticada produzida por aqui, ajudando a torná-la conhecida, admirada e imitada mundo afora.   

De Donga a Chico Buarque, composições brasileiríssimas foram cunhadas ao violão, que continua a harmonizar sambas como "no tempo que quem fazia, corria do camburão" (Paulo César Pinheiro em E lá vou eu).

Tempo vivido por Wilson Batista, Geraldo Pereira, Nélson Cavaquinho, mestre Cartola... "Todos morreram pobres", ouvi Nélson Sargento dizer num depoimento carregado de orgulho e tristeza. Ele também teve o mesmo destino. 

Mas como enriqueceram, ao violão, as nossas vidas!

E é ao "bojo perfeito" que Angenor de Oliveira - ele mesmo, Cartola - dedica os últimos versos de um dos seus clássicos:

Solte o seu som da madeira

Eu, você e a companheira 

Na madrugada iremos pra casa cantando 

Eis o momento único em que três não é demais.