Crônica do Ricardo Mota: E haja gênio!

05/05/2024 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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Nos últimos anos de sua longeva e produtiva vida, o escritor Ariano Suassuna ganhou popularidade para além da sua produção literária, graças a suas aulas-espetáculo.

Deliciosas eram sim, e há várias que você pode acompanhar pelo YouTube. Elas colecionam momentos em que o paraibano que Pernambuco abraçou como se fosse um dos seus se transformava em um delicioso comediante/provocador, como bem destacou outro grande da literatura: Raduan Nassar.

Em São Paulo, Suassuna mandou mais um dos seus “geniais” chistes. Leu na Folha, assim disse, que Ximbinha, músico de uma banda – vou dispensar os adjetivos, ok? – do Pará “era um gênio”. Isso: um gênio! – posto em um dos jornais de maior prestígio e respeito no país, mas não imune às coisas do mundo.

Ariano:

- Se Ximbinha é um gênio, o que eu posso dizer de Beethoven?

Pois é: até o imenso vocabulário do homem que inventou O  Auto da Compadecida reconheceu que a nossa língua pátria tinha limites e, no caso, nos deparávamos com eles. Doloroso e inegável fato é que o “gênio” Ximbinha já parece ter caído no esquecimento – precoce? -, enquanto o compositor alemão continua sendo lembrado, quase 200 anos depois da sua morte.

Mas esse fenômeno, da identificação da genialidade de uns tantos e improváveis personagens, já havia sido desvendado no século XVIII pelo físico, filósofo e escritor alemão George Christoph Lechitenber, ele próprio um sujeito grandão.

Comparado a Montaigne por gente do meio, elogiado por Schopenhauer, um dos escritores favoritos de Einstein, Freud e Tolstói, apontado por Nietzsche como o único escritor alemão “que vale a pena ler repetidamente”, o George aqui citado fez observações cáusticas sobre os homens que enxergamos acima dos outros homens:

"Certas pessoas são chamadas de gênios da mesma forma que certos insetos são chamados de centopeias: não porque tenham mais de 100 pés, mas porque a maioria das pessoas não consegue contar além de 14."

Depois dessa é praticamente impossível fazer uma lista daqueles e daquelas que consideramos gênios, até porque a definição da palavra ficou mais exigente, a pedir provas do nosso julgamento.

É inegável que até as pessoas mais comuns têm seus momentos de – quase – genialidade. Situações vividas em que batemos no nosso peito interior e manifestamos o orgulho de sermos nós mesmos – seja numa tirada ligeira, seja numa criação excepcional, num gol de placa numa pelada em que não havia filmadora, e até na solução de um problema cotidiano quando o esperado era deixar que o tempo operasse o esquecimento – inclusive do nosso fracasso. 

E este é o busílis: se entendermos que atingimos uma exceção, apenas, e que iremos, como todo mundo, voltar à normalidade, à média, não haverá nada de mal em nos refestelarmos com a nossa presença no mundo. Até ajuda a viver. O problema é não compreendermos que, também nesse caso, só quem não é passageiro é o motorista (o cobrador sumiu?! Sinal dos tempos).

É claro que há muita gente, embora nem tanto quanto poderia apontar a nossa vã filosofia, que tem uma média muito acima da grande maioria dos humanos. Talvez a palavra “talento” explique essa excepcionalidade que nos causa admiração e até inevitável inveja. 

Lembro aqui a melhor definição que já ouvi dessa condição humana e específica, dita pelo humorista Agildo Ribeiro:

- Talento para mim é aquilo que a pessoa faz com mais facilidade.

Simples assim, dispensando adjetivos mais adiposos, podemos entender até que cada um tem o seu, sem que precise ser genial - ainda que alguns sejam de verdade.

Ao fim e ao cabo, gente, acho que há palavras que deveriam vir com bula e uma recomendação. Gênio é uma delas. No dicionário, após a sua apresentação, o alerta necessário:

- Use com moderação.

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