Crônica do Ricardo Mota: E haja gênio!
Nos últimos anos de sua longeva e produtiva vida, o escritor Ariano Suassuna ganhou popularidade para além da sua produção literária, graças a suas aulas-espetáculo.
Deliciosas eram sim, e há várias que você pode acompanhar pelo YouTube. Elas colecionam momentos em que o paraibano que Pernambuco abraçou como se fosse um dos seus se transformava em um delicioso comediante/provocador, como bem destacou outro grande da literatura: Raduan Nassar.
Em São Paulo, Suassuna mandou mais um dos seus “geniais” chistes. Leu na Folha, assim disse, que Ximbinha, músico de uma banda – vou dispensar os adjetivos, ok? – do Pará “era um gênio”. Isso: um gênio! – posto em um dos jornais de maior prestígio e respeito no país, mas não imune às coisas do mundo.
Ariano:
- Se Ximbinha é um gênio, o que eu posso dizer de Beethoven?
Pois é: até o imenso vocabulário do homem que inventou O Auto da Compadecida reconheceu que a nossa língua pátria tinha limites e, no caso, nos deparávamos com eles. Doloroso e inegável fato é que o “gênio” Ximbinha já parece ter caído no esquecimento – precoce? -, enquanto o compositor alemão continua sendo lembrado, quase 200 anos depois da sua morte.
Mas esse fenômeno, da identificação da genialidade de uns tantos e improváveis personagens, já havia sido desvendado no século XVIII pelo físico, filósofo e escritor alemão George Christoph Lechitenber, ele próprio um sujeito grandão.
Comparado a Montaigne por gente do meio, elogiado por Schopenhauer, um dos escritores favoritos de Einstein, Freud e Tolstói, apontado por Nietzsche como o único escritor alemão “que vale a pena ler repetidamente”, o George aqui citado fez observações cáusticas sobre os homens que enxergamos acima dos outros homens:
"Certas pessoas são chamadas de gênios da mesma forma que certos insetos são chamados de centopeias: não porque tenham mais de 100 pés, mas porque a maioria das pessoas não consegue contar além de 14."
Depois dessa é praticamente impossível fazer uma lista daqueles e daquelas que consideramos gênios, até porque a definição da palavra ficou mais exigente, a pedir provas do nosso julgamento.
É inegável que até as pessoas mais comuns têm seus momentos de – quase – genialidade. Situações vividas em que batemos no nosso peito interior e manifestamos o orgulho de sermos nós mesmos – seja numa tirada ligeira, seja numa criação excepcional, num gol de placa numa pelada em que não havia filmadora, e até na solução de um problema cotidiano quando o esperado era deixar que o tempo operasse o esquecimento – inclusive do nosso fracasso.
E este é o busílis: se entendermos que atingimos uma exceção, apenas, e que iremos, como todo mundo, voltar à normalidade, à média, não haverá nada de mal em nos refestelarmos com a nossa presença no mundo. Até ajuda a viver. O problema é não compreendermos que, também nesse caso, só quem não é passageiro é o motorista (o cobrador sumiu?! Sinal dos tempos).
É claro que há muita gente, embora nem tanto quanto poderia apontar a nossa vã filosofia, que tem uma média muito acima da grande maioria dos humanos. Talvez a palavra “talento” explique essa excepcionalidade que nos causa admiração e até inevitável inveja.
Lembro aqui a melhor definição que já ouvi dessa condição humana e específica, dita pelo humorista Agildo Ribeiro:
- Talento para mim é aquilo que a pessoa faz com mais facilidade.
Simples assim, dispensando adjetivos mais adiposos, podemos entender até que cada um tem o seu, sem que precise ser genial - ainda que alguns sejam de verdade.
Ao fim e ao cabo, gente, acho que há palavras que deveriam vir com bula e uma recomendação. Gênio é uma delas. No dicionário, após a sua apresentação, o alerta necessário:
- Use com moderação.
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