Doce vingança

28/04/2024 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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Uma das melhores histórias de vingança que a Arte já produziu está em O segredo dos seus olhos, película argentina, ganhadora do Oscar de melhor filme internacional. Dirigido por Juan José Campanella, tem como protagonista Ricardo Darín - o grande ator de cinema, que rejeitou Hollywood e deu de ombros para as novelas -, ao lado de Soledad Villamil (que sinal belíssimo!) e Pablo Rago.

Dito isso, pergunto: e por que não a melhor história de vingança?

Porque respeito demais – e gosto muito – de Shakespeare e suas várias tragédias embaladas pelo tema, a começar por Hamlet, o clássico dos clássicos nos palcos de teatro do mundo inteiro (acho que funciona menos na telona, mas aceito divergências).

Claro que não podíamos nos esquecer de Diadorim, a heroína trágica de Guimarães Rosa, que escondeu sua beleza até a hora da morte - que ocorreu no instante em que executou o seu tão bem guardado segredo de vingança. Claro: Machado de Assis também trouxe ao mundo “os olhos de ressaca”, “de cigana oblíqua e dissimulada”, de Capitu, na narrativa cheia de amor e de despeito de Bentinho (traído? Quem quiser que argumente o seu ponto de vista).

Há outros autores menos nomeados que trataram do tema maravilhosamente, como o albanês Ismail Kadaré, que nos revelou em Abril despedaçado a universalidade desse sentimento que nos leva à reação, tão ou mais terrível do que a ação. O escritor que mora na França, para onde se mudou quando a ditadura de Enver Hoxha ainda mandava nas montanhas e nas pessoas no território localizado na Península dos Balcãs, conta um pouco de uma tradição que vigeu por longos séculos na Albânia profunda.

Para quem não leu o livro ou não  viu o filme (que eu também não vi): a história é em tudo semelhante ao que, por décadas,  acompanhamos perplexos em Exu, no vizinho estado de Pernambuco, terra do Rei Luiz Gonzaga, onde a vingança era contínua entre os Alencar e os Sampaio. A cada morte, a pergunta: quem será o próximo? A série homicida começa como uma réplica brasileiríssima e sertaneja de Romeu e Julieta, daquele inglês especialista em histórias de vingança. 

Praticada quase sempre a quente, já que a dor nem sempre perde o seu calor com o tempo, a vingança – mortal ou não – encontrou a melhor definição, ou a mais popular, no autor francês Eugéne Sue, no século XVIII, em Memórias de Matilda. O termômetro, para ele, mede outra temperatura quando da execução do ato tão almejado: 

- A vingança é um prato que se come frio.   

É inegável, gente, que apesar da idade da Humanidade e da já longa construção da Civilização, que perseguimos para que haja um melhor convívio entre os da nossa espécie, ainda assim a ânsia de vingança nunca foi debelada em nossa alma.

É claro que em países como o Brasil, mas não só, esse sentimento nos soa automático, ato reflexo, a cada situação de violência em que gente inocente – crianças, mulheres, idosos, negros, gays ou seja quem for – é atingida mortalmente ou quase. Lançamos, então, nossa imaginação em direção ao vigilantismo, que já é praticado pelo Estado sempre que do outro lado está alguém sem sobrenome ou sem vultosas contas bancárias.

Levando-se em conta que o Judiciário brasileiro, assim como boa parte da população – a turma da Lei não veio de outros planetas, certo? –, é seletivo e tolerante para com os que nos veem de cima para baixo, a vingança sempre surge ao senso comum como uma possibilidade factível e desejável. Mas tomara que deixe de ser um dia, ainda que distante, até quando ela nos pareça doce - se mudarmos nós, se mudar a Justiça.

Se querem saber, eu não me coloco acima dos cidadãos comuns, eu sou um deles, considerando nossas virtudes e defeitos. Mas sempre que essa ideia me vem à cabeça, por algum motivo, recordo-me da máxima atribuída a Confúcio (?):

- Antes de sair em busca de vingança, cave duas covas.

O pior para alguém, imagino, é carregar o remorso de quem já está morto, ainda que vivo.

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