Assunto de família

14/04/2024 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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Nada melhor do que alguns cabelos brancos - e eu trago nesta cor todos os que me sobraram - para saber que nós fantasiamos o passado, o de cada um, tanto quanto o fazemos com o futuro. Até mais, em número sem fim de casos.

Quem é pai/mãe há de lembrar-se de uma queixa clássica dedicada à prole ou a parte dela: errei em tal ou qual quesito na educação repassada à descendência. Ignoramos, por óbvio, que os nossos pais tenham feito os mesmos reparos, porque aprontamos também enquanto escrevemos o nosso enredo - como apronta cada criança ou adolescente.

O problema passa a existir, verdadeiramente, quando chegamos à fase adulta e não detectamos o que está errado em nós mesmos. Então, o problema cria asas e viaja pelo vasto mundo que fica do lado de fora da nossa casa. 

Mas eis que é fato: ansiamos sempre que a escola seja o grande corretor dos defeitos que enxergamos, quando enxergamos, nos nossos filhos e filhas. Acho que, na verdade, esse papel caberá, terrivelmente, ao mundo, quando uma ou algumas dessas imperfeições resultarem em consequências ruins para outras pessoas, ou até para a sociedade.

Já concluí, faz tempo, que uma das piores e mais difíceis tarefas humanas é a de “construir” gente, considerando desejos e vontades que se somam aos sentimentos primitivos que carregamos, independentemente de qualquer geração: a tal da essência humana, insuperável, permanece para o bem e para o mal.

Platão, considerado por muitos como o pai da filosofia ocidental, defendeu – através de Sócrates no “diálogo” – que os filhos e filhas com idade inferior a dez anos fossem retirados dos pais biológicos e demais familiares, para que passassem a receber uma educação ministrada por professores e sábios, onde só a racionalidade fosse objeto do aprendizado (Platão, lembremo-nos, não negava a sua repulsa aos poetas). 

Claro que não deu nem daria certo. 

O que não impediu o ditador romeno Nicolae Ceaucescu, alguns séculos depois, de tentar pôr em prática o ensinamento platônico, para dor e desespero de homens e mulheres que eram obrigados a obedecer às suas ordens tirânicas. Milhares de crianças foram, então, criadas longe dos pais para a construção da “nova sociedade”, baseada no “novo homem”.

Triste, porém a mais pura verdade, Ceaucescu foi executado – ele e a esposa - por um tribunal popular romeno, no Natal de 1989. Deixou seu rastro de fome e sangue, numa nação que ainda pena para se recuperar da sua mão cruel, que oprimiu o país por 25 anos. 

É bem verdade que cada indivíduo já carrega, ao nascer, uma memória da espécie, que nem sempre traz as melhores qualidades que temos. Sim, ora direis, mas Rousseau garantia que a Natureza fez o homem bom e feliz, o meio, porém, o subverte e corrompe. 

Talvez ele só tenha razão em parte da sua crença, a do papel do meio, que nunca começa do zero, no entanto, já que a alma primitiva dos seres humanos permanece viva, ainda que aqui e ali seja contestada e até enfrentada com valentia. 

Só para não nos perdemos no meio do dito e por quem foi dito: Rousseau abandonou nada menos do que cinco filhos recém-nascidos, clandestinamente, na porta de orfanatos parisienses. Confesso que desconheço o destino dos “bons e felizes” descendentes do filósofo, que, é o que parece, não preservou as qualidades que teria trazido do berço. É danada essa história do “acredite no que eu digo”, principalmente se eu mesmo não pratico o que defendo.

O que me parece verdadeiro: não dá para fugir à responsabilidade de tentar dar régua e compasso a quem nós colocamos no mundo. Até porque eles replicarão alguns dos nossos vícios, como pessoas, e, é claro, inventarão os seus próprios. 

Mas, inegavelmente, levarão de casa, para o mundo, os princípios que haveremos de lhes ensinar, se de fato os praticamos. Cá para nós: ninguém haverá de desmascarar mais rapidamente pai/mãe quanto filho/filha. 

Fora isso, a hipocrisia vai nos cobrar o seu preço. E este é sempre muito salgado.
 

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