A denúncia ofertada à Justiça pelo Ministério Público de Alagoas tendo como alvo um homem negro que teria cometido injúria racial contra um italiano, repercutiu em todo o país na semana passada. O órgão ministerial argumenta que a denúncia tem como base a Lei 14.532/2023, que equipara a injúria racial ao racismo, definindo pena de multa e reclusão de dois a cinco anos para quem “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”.

Especialistas ouvidos pelo CadaMinuto, no entanto, repudiaram a denúncia, entendida por eles como uma tentativa de classificar o caso como “racismo reverso” – termo que tem sido usado para classificar, por exemplo, quando pessoas brancas sofrem preconceito em razão da cor. 

 

“Racismo naturalizado”

A coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas, Arísia Barros, explica a razão pela qual o dito “racismo reverso” sequer existe: “O racismo é um ideário social de que existe uma raça superior à outra. E quando a gente pensa nessa perspectiva é a dita raça branca que se faz superior a todas as outras. É inconcebível que haja essa leitura de que um homem negro possa ofender racialmente um homem branco. Ora, porque se existe essa superioridade, como é que essa equação se resolve? Não se resolve”. 

Para a militante da causa negra, o Judiciário Brasileiro é a grande representação da hierarquia social no país, que é branca, trazendo todos os conceitos dessa suposta superioridade de raças. Ela afirma que a denúncia é resultante de conceitos estabilizados, internalizados e naturalizados, “pois o racismo é algo naturalizado em Alagoas”. 

“De certa forma isso causa uma indignação, é para causar, mas o assombro, pelo menos nessa ativista, não causa, porque o silenciamento em relação ao processo, em Alagoas, é tão intenso, porque é o contexto do estado eurocêntrico, androcêntrico e silenciado nessas questões”, analisou Arísia.

A ativista fez questão de pontuar que há aliados da luta antirracista em vários espaços em Alagoas, inclusive no Judiciário. “Ainda são muito poucos, mas é um começo. Eles são poucos e ainda não têm o poder de movimentar a máquina para discutir mais abertamente esses processos das práticas racistas. Falta entendimento, nós ainda não alcançamos o que está dito na lei. A Justiça não alcança o que está dito na lei”, prosseguiu.

Sobre esse entendimento, ela explica que, quando se fala em injúria racial, em racismo, são para os grupos minoritários, grupos que não têm o poder de voz, não têm o poder de mando: “Isso não acontece com a raça branca porque é ela que norteia os caminhos desse país. É ela que norteia os espaços do poder desse país. Portanto, discutir racismo a partir do olhar eurocêntrico é extremamente complicado, inviável e complexo”.

Arísia Barros acredita que, com toda a repercussão, uma ação dessas pode servir como experiência pedagógica, que pode traçar alguns caminhos, reeducar olhares, reeducar espaços, fazer análises sociais de como a questão do racismo estrutural está sendo trabalhada e a partir daí que o letramento racial deixe de ser apenas uma simbologia acadêmica e se espalhe nos vários espaços para que aprendamos a aprender. “Isso é um grande tropeço jurídico e é importante se fazer releituras”, concluiu. 

 

Deturpação da lei

Em entrevista ao CadaMinuto, Pedro Gomes, secretário-adjunto da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/AL) e advogado do Núcleo de Advocacia Racial do Instituto do Negro de Alagoas (INEG), defende que houve falha na interpretação na Lei 14.532.

Segundo o advogado, a lei é muito clara quando fala que, no momento de julgamento, no momento de apreciação de qualquer tipo de crime racial, o julgador, e também quem denuncia, no caso específico do Ministério Público, deve atentar que, para a verificação se há ou não a discriminação que pode ser considerada tipificada dentro do escopo da lei dos crimes raciais, tem que ser de uma pessoa ou de um grupo de pessoas que, tal qual a sua proveniência geográfica, a sua etnia, a sua cor, a sua religiosidade, pertença a um grupo que historicamente venha sendo discriminado, discriminação essa que outros grupos normalmente não receberiam.

“Não há qualquer tipo de imputação do crime de injúria racial quando alguém fala que determinada pessoa tem uma cabeça branca, europeia, escravista. Ele está se referindo, no caso específico, a mente branca europeia escravista, que é um fato, não é uma injúria”, diz ele.

“Quando o Ministério Público, quando alguém se utiliza de uma lei que é fruto de uma luta histórica do movimento negro brasileiro, que lutou muito e luta para que os crimes raciais sejam punidos com a força, punidos com o vigor que uma democracia séria exige, quando finalmente a gente consegue algo semelhante, que foi uma grande vitória do movimento, que é essa lei, a gente não pode deixar que pessoas se subutilizem desta lei, que deturpem a lei para punir as verdadeiras vítimas, que é o que está acontecendo”, analisou Pedro Gomes.

O advogado alerta que, se a situação se concretiza, é um risco muito grande para a já frágil democracia brasileira, principalmente em relação às questões raciais: “Estamos em um caminho muito distante ainda do ideal, mas a gente tem caminhado. Então, a partir do momento em que uma pessoa se utiliza de uma legislação tão importante para poder deturpar o seu sentido, damos dez passos atrás... Abre-se um precedente muito perigoso para o sistema judiciário e para o próprio combate ao racismo como um todo dentro do Brasil”.

 

Letramento racial

O representante da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/AL destacou que é importante dizer que o Ministério Público de Alagoas é um parceiro do Instituto do Negro de Alagoas em diversas lutas, “mas fica uma preocupação muito grande sobre qual o nível de letramento racial, de treinamento que os membros do Ministério Público estão tendo, não só em Alagoas como no Brasil inteiro”. 

“Há algum tipo de cobrança, há algum tipo de reciclagem dos quadros do Ministério Público sobre letramento racial?, porque a interpretação, no mínimo, errônea da promotora sobre a lei de crimes raciais demonstra que há um problema muito sério sobre interpretação, sobre racismo, sobre o entendimento dos membros do Ministério Público sobre o que é racismo, sobre o que são crimes raciais, sobre o que é racismo estrutural, sobre o que é realmente uma injúria racial e o que é uma injúria simples”, pontuou.

O advogado finalizou reforçando o questionamento sobre o que o MP tem feito para dar aos seus membros um letramento racial de qualidade, e reforçando a preocupação sobre “como o Sistema Judiciário alagoano e brasileiro vai encarar a denúncia, no mínimo, lamentável”. 

 

Crime de injúria racial

Em nota sobre o caso divulgada no dia 16 deste mês, o MP-AL informou que, “a respeito do caso ocorrido em Coruripe, em 2023, onde um homem italiano apresentou uma queixa-crime contra um cidadão que morava em sua residência (ele era sobrinho da companheira do italiano), foi ajuizada uma ação penal por injúria racial. Tal denúncia foi proposta com base nas provas apresentadas pelo advogado do italiano”.

A nota segue: “O caso em questão se trata de crime de injúria racial, que é configurado quando alguém tem o objetivo de ofender outra pessoa em razão de raça, cor, etnia, religião ou origem. A Lei nº 14.532/23, sancionada ano passado, estabeleceu que esse ilícito penal passou a ser crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, ele não depende mais de qualquer queixa formalizada pela vítima, passando, o Ministério Público, a ser o titular da ação penal”.

“O Ministério Público, ao analisar o caso concreto, leva em consideração as provas acostadas aos autos, _ in casu_ que foi protocolado pela defesa do italiano. Dentre essas provas, estão conversas em que um homem profere palavras ofensivas à vítima, referindo-se, de forma pejorativa, à sua nacionalidade italiana. Ao ajuizar uma denúncia contra um acusado, o MPAL não pode se ater a cor da pele ou a qualquer outra característica que ele possua, uma vez que tal questão não está relacionada ao suposto ato praticado”.

“Por fim, o MPAL esclarece que, dentro da instrução processual, ambas as partes envolvidas na ação penal terão a oportunidade de apresentar seus argumentos e defesas, conforme estabelece o Código de Processo Penal. E, caso seja comprovado que o réu foi vítima de algum crime praticado pelo italiano, a Promotoria de Justiça de Coruripe solicitará instauração de inquérito policial para a devida apuração”.