Recentemente, a Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) divulgou que vai abrir uma licitação para expandir o número de câmeras que utilizam reconhecimento facial e de câmeras OCR, sigla para Optical Character Recognition (Reconhecimento Óptico de Caracteres, em português). A tecnologia, utilizada para leitura de placas de veículos, também pode ser usada com a finalidade de reconhecimento facial.

Ao CadaMinuto, o secretário executivo de Gestão Interna da SSP, José Carlos dos Santos, disse que enxerga a tecnologia como uma importante aliada no combate à criminalidade. 

Ele pontuou que, com o sistema, a Secretaria espera alcançar benefícios como a prevenção de delitos, a inibição da prática delituosa na área monitorada e, também, a elucidação de crimes, já que o novo sistema, além da captação de imagens, permitirá a leitura de caracteres (ex. identificação de placas de veículos) e reconhecimento facial.

“Veículos utilizados na prática de crimes e pessoas que pratiquem delitos estarão sujeitos a serem identificados e as câmeras serão uma ferramenta fundamental nesse sentido”, explicou.

Quanto ao sigilo das imagens, o secretário afirmou que as imagens somente poderão ser utilizadas dentro dos limites da lei. “Serão observadas as regras constitucionais que tratam da intimidade das pessoas e da lei que trata da proteção de dados”, comentou.

 

Sigilo das imagens

O advogado e professor de Direito Penal Bruno Leitão explicou que a Constituição Federal protege a intimidade e a privacidade do cidadão, porém, essa garantia pode ser mitigada para a tutela de outros interesses em conflito, como ocorre para apuração de fatos criminosos. 

Ele destaca que a captação, guarda e utilização de imagens devem obedecer a critérios que o Código de Processo Penal e outras leis especiais já orientam. “Por exemplo, a partir da ocorrência de um suposto fato criminoso, a autoridade policial deve preservar o local e os objetos da ‘cena do crime’, para que tudo seja periciado e armazenado sem alterações que comprometam sua utilização”, avaliou. 

Bruno comenta que, no inquérito policial, há sigilo dos dados em investigação, só a partir do processo instaurado é que pode existir a publicidade. O mesmo princípio é aplicado às imagens obtidas por reconhecimento facial: “Elas devem ser captadas, verificadas quanto à sua integridade e armazenadas em sigilo durante o inquérito policial, podendo ser utilizadas já para fundamentar uma prisão em flagrante, mas para as demais formas de prisão necessitaria de avaliação do poder judiciário, e mesmo assim, nunca de forma isolada, pois deve ser corroborada por outros elementos que indiquem a necessidade da medida”.

Porém, o advogado alerta que a prisão em flagrante não pode ser efetuada em todos os casos, já que a medida pode se apresentar como necessidade para apuração do ocorrido. “Aqui, o indivíduo é detido para coleta de informações úteis, apresentado ao juiz em até 24 horas para a verificação de legalidade da medida, bem como a necessidade de sua manutenção, que na avaliação fundamentada do magistrado pode se apresentar como necessária, nesse caso sendo convertida em outra modalidade de prisão”, disse. 

“Nesse sentido, também poderia ser útil a captura de indivíduos com prisões decretadas (processo em curso), ou mesmo já condenados (processo finalizado com condenação transitada em julgado)”, completou.

 

Não substitui reconhecimento pessoal

Segundo o advogado Welton Roberto, o Artigo 226 do Código Penal (CP) determina a questão do reconhecimento de pessoas. “Não é ainda é algo admitido no processo penal o reconhecimento por imagem e, principalmente, imagem facial que pode ser deturpada, que pode ser feito qualquer tipo de alteração na imagem”.

Ele pontuou que sistema não pode burlar o CP, mas pode servir como fonte ou indicativo para saber que determinada pessoa é quem aparece no vídeo, uma vez que a imagem pode sofrer qualquer tipo de alternância, edição ou montagem. 

“O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha admitindo reconhecimento por foto, mas mudou a jurisprudência recentemente quando uma pessoa foi praticamente reconhecida por foto sem ter passado pelo Artigo 226. O STJ anulou todas as 60 condenações que essa pessoa tinha, exatamente por haver o erro judiciário”, disse Welton.

O advogado reiterou que o uso da tecnologia deve servir somente para auxílio, mas não como uma forma final e definitiva de enquadramento de autoria de crimes: “É possível fazer o vídeo monitoramento, mas não com o fito de fazer com que o monitoramento substitua o reconhecimento pessoal da vítima ou daqueles que pretendem e podem reconhecer a pessoa autora ou partícipe de delitos”.

 

É necessário ter cautela

O advogado Bruno Leitão também alerta que o reconhecimento facial não é o suficiente para enquadrar alguém criminalmente por um delito e também sugere cautela no uso da nova tecnologia. 

“Por mais que nos aparente um maior juízo de certeza, as regras do Código de Processo Penal obrigam os agentes públicos a algumas formalidades (protocolos) para o reconhecimento de pessoas, bem como, quanto a medidas que busquem fundamentar prisões ou condenações, sua utilização deve estar corroborada por outros indícios relevantes para prisão, e outros elementos probatórios quando se trata de condenação (pena)”, disse.

Quando se trata de inovação, o advogado e professor de Direito Penal pontua que alguns cuidados são necessários: “Primeiro, não cair no discurso que toda tecnologia, por ser algo aparentemente mais objetivo e técnico, apresenta verdades irrefutáveis. Imagens podem não apenas induzir percepções distintas a depender do ângulo ou de seu enquadramento, como podem ser manipuladas, por isso a necessidade de nunca as usar desvinculadas de outros elementos probatórios que possam corroborá-la”. 

Outro risco, segundo Bruno, é de que forma pode ser criado um banco de dados, “pois se a coleta e armazenamento de imagens for seletiva, optando, por exemplo, prioritariamente por determinados espaços urbanos e grupos sociais, como bairros periféricos, ela pode apresentar os mesmos vieses já verificados em determinadas corporações que atuam na segurança pública”.