"Há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira".

"Quando o pobre come frango, um dos dois está doente".  

As duas frases, ainda hoje tão repetidas, têm um autor que o tempo se encarregou de fazer esquecer. Aparício Torelly, o talentoso gaúcho de alma plenamente brasileira, nascido no final do século dezenove (1895),  é o criador de  tantas máximas que hoje são de domínio público. Ele virou um clássico e foi, talvez, o verdadeiro pai do humorismo na imprensa brasileira. 

Na década de 1920, enfrentando dificuldades financeiras, o já ex-estudante de Medicina migrou para o Rio de Janeiro, capital do país. Ao se apresentar em O Globo a Irineu Marinho - pai de Roberto Marinho -, foi indagado sobre o que ele sabia fazer: “Tudo, desde contínuo a diretor de jornal", respondeu de primeira. Nascia ali o humor iconoclasta, subversivo - no melhor dos sentidos - e que incomodou a tantos poderosos daquele Brasil pré-estadonovista. 

Depois de conseguir fazer nome na imprensa carioca, Aparício resolveu fundar o seu próprio jornal, A Manha, numa alusão evidente ao diário A Manhã, de grande prestígio no Rio de Janeiro. Trazia, logo abaixo do título, o anúncio do que pretendia a novidade: “Quem não chora não mama". 

Pura provocação, o que marcaria toda a sua trajetória profissional. No Estado Novo fez vários inimigos entre os getulistas. O duro general alagoano Góes Monteiro, por exemplo, ele batizou de "Gás Morteiro" - e era preciso coragem para fazê-lo naquela quadra da vida brasileira. 

O Estado Novo? 

"É o estado a que chegamos", dizia Aporelly, que passou a assinar Barão de Itararé. Título de nobreza, aliás, que ele próprio resolveu se outorgar, "por se distinguir nos campos de batalha" - exatamente aquela que não aconteceu.

Um outro alagoano se fez presente na difícil vida financeira do Barão: Arnon de Mello, então jornalista de renome no Rio de Janeiro, ajudava-o com frequência. Intelectuais contribuíam com 

A Manha

, escrevendo artigos literários de prestígio: José Lins do Rego e Rubem Braga foram alguns deles.

Mas não foi o suficiente para protegê-lo da ira da ditadura varguista. Numa das vezes em que foi detido, ao juiz que o interrogava sobre a razão da sua prisão, Aporelly explicou:

- Acho que foi por causa do cafezinho.

Ele havia sido preso em um café, quando ingeria mais uma xícara do seu pretinho preferido. A sua mãe, disse o Barão, sempre o alertava para os riscos do cafezinho: "Só pode ter sido castigo", emendou.

Não bastasse ter de enfrentar a repressão oficial, ainda fez inimigo o Integralismo, de Plínio Salgado. Dizia ele que, inicialmente, pensou até em aderir ao movimento fascista brasileiro, motivado pelo slogan: "Adeus, Pátria e Família". Claro, era mais uma provocação (“A Deus, Pátria e Família”, brandiam os integralistas e os seus herdeiros mais recentes). Foi sequestrado e espancado pelos seguidores de Salgado, mas continuou sua vida de humorista e jornalista militante.

Com o fim do Estado Novo, Aparício Torelly foi lançado, em 1947, candidato a vereador pelo PCB do Rio de Janeiro. Depois de tantos embates, outro inimigo lhe rangeu os dentes: a Liga Eleitoral Católica, que se postou contra a candidatura dele. "Dura LEC, sed LEC", rebateu.

Eleito, foi protagonista de apartes históricos em plenário. Quando um parlamentar quis saber qual era a posição de Filinto Müller, chefe da temida polícia política varguista, foi ele quem desvendou o mistério: 

- É três dedos abaixo do rabo do cachorro. 

À perplexidade de Moura Brasil, que dizia não enxergar direito o que se passava no país pós-ditadura, não podia ser mais hilária a sugestão do vereador-barão: 

- Duas gotas, dois minutos...Colírio Moura Brasil.

Aparício morreu, em 1971, pobre e sozinho. Os novos tempos vieram, com outros geniais humoristas - Millôr Fernandes em destaque, então. Não se acostumou à chamada modernidade, e, assim parece, também não o quis. Ao andar pelo renovado Rio de Janeiro, acompanhado de um amigo, advertiu ao perceber um ônibus vindo em direção aos dois: 

- Cuidado, aquele ali já nos viu!

É um pouco, apenas, da história do personagem rico e atuante da imprensa brasileira, que disse, já nos estertores de uma trajetória única: 

- Este mundo é redondo, mas está ficando meio chato.

Bravo, Barão!