A Câmara dos Deputados aprovou, no dia 5 de setembro, o projeto de lei (PL) que limita os juros do rotativo do cartão de crédito. A proposta, relatada pelo deputado Alceu Santana do (PT-SP), propõe um limite 100% para o crédito rotativo caso o setor não apresente uma sugestão que reduza a taxa, até o final do ano.

Conforme o PL, no caso do limite de 100%, por exemplo, se o consumidor tem uma dívida de R$ 1 mil no cartão crédito, o banco só poderia aplicar até outros R$ 1 mil de juros e encargos financeiros. Neste caso, o valor total da dívida não poderia passar de R$ 2 mil.

Após a aprovação na Câmara, a ideia é que o setor elabore uma proposta de regulamentação em até 90 dias, a partir da sanção do texto, que precisará também do aval do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central (BC).

Em entrevista ao CadaMinuto, a economista, e doutora em desenvolvimento econômico, Luciana Caetano explica de que forma o PL vai impactar a economia, o bolso do consumidor e as instituições financeiras.

Confira a entrevista:

Em 1999, foi revogado da Constituição o artigo 192, que limita o juro do sistema financeiro em 1% ao mês, que dava 12% ao ano, acima da inflação. Desde lá, o mercado financeiro é livre para cobrar o juro que quiser. Na situação econômica atual, faz sentido limitar o juros e qual a intuito do governo com a decisão?

O propósito do governo é diminuir o custo de utilização do crédito que afeta, principalmente, aos de baixa renda, aos de rendimento não estável e aos que, inesperadamente, caíram na condição de desempregado. O mercado financeiro precisa, sim, de um freio de mão porque é o setor que mais fatura, mesmo quando a economia está em desaceleração. Os juros do rotativo do cartão são um acinte ao trabalhador assalariado. Considerando uma inflação média de 5% ao ano, mesmo uma taxa de juros de 6% ao mês já é desproporcional, sobretudo, porque a escala de oferta do crédito é muito elevada e concentrada nas mãos de poucas instituições. Os ganhos são exorbitantes.

Em junho deste ano, a taxa de juros chegou a 440% no rotativo do CC, a maior já registrada no mercado financeiro. Com o PL, a Câmara tem a ideia de limitar os juros a 100% ao ano. No entanto, o teto só será válido se as instituições financeiras não estabelecerem uma taxa menor em até 90 dias. Ou seja, a ideia é que o próprio banco estabeleça o teto?

A regulação estatal não pode ser substituída por um suposto bom senso do setor financeiro. É preciso que o teto seja definido por lei para ser cumprido, do contrário, os bancos permanecerão com a liberdade de aumentar, quando parecer conveniente. Mesmo que as compras a prazo resultem na cobrança de juros ou correção monetária em conformidade com a inflação do período.

Na prática, como esse limite irá funcionar para o consumidor? Há algum benefício da proposta para a população?

Se aprovado o limite de 100% ao ano no rotativo (5,9% ao mês), resultará em redução do custo de financiamento quando houver atraso no pagamento. Em outras palavras, se alguém atrasar a fatura de R$ 1.000,00 por ano, ao invés de estar devendo R$ 5.400,00, deverá R$ 2.000,00 à operadora.

Os bancos alegam que o texto aprovado no Congresso não trata do parcelamento de compras sem juros e afirmam que é isso que faz as taxas serem altas. Existe compras sem juros?

Existem vendas por prazo de até 10 meses, a depender da empresa, em que o valor parcelado fica igual ao valor à vista. Em tese, seria uma compra parcelada sem a cobrança de juros. Os bancos estão reivindicando o direito de, nas compras parceladas, adicionar juros mensais. Se forem cobrados juros em parcelamentos curtos, é possível que haja redução na demanda por crédito, como já ocorre com os postos de gasolina que sempre cobram um valor mais elevado mesmo para o crédito em 30 dias. Haveria uma mudança no padrão de comportamento da população. Quem perderia? Os bancos. Uma menor demanda por crédito afeta aos bancos mais do que a qualquer outra categoria de agente econômico.

A população consume indiscriminadamente e muito no parcelado. O que o consumidor deve verificar antes de efetuar uma compra deste tipo no cartão?

Se não houver acréscimo de valor, não há problema, desde que o consumidor respeite sua capacidade de endividamento, condicionada à renda auferida mensalmente. Havendo cobrança de juros, adie a compra ou a faça à vista, se for uma opção.

Segundo a Confederação Nacional do Comércio, em agosto 30% dos brasileiros estavam com alguma dívida atrasada. Esse número representa 20% a mais do que no mesmo período do ano passado e representa 0,5% a mais do que no mês de julho deste ano. Na sua opinião, ainda que a economia melhore, há chance de reduzir esse número de endividados, sem mexer nos números do rotativo? 

Sim, esse percentual oscila entre 24% e 30%, com variações entre estados e municípios. As causas do endividamento são muitas. Às vezes é falta de planejamento do consumidor, mas em outras é devido à perda do emprego ou gasto imprevisto que desorganiza o orçamento, principalmente com problemas de saúde. 75% da população não tem plano de saúde e é um serviço de custo muito elevado no Brasil.

A Febraban, o Banco Central, a Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos têm perspectivas distintas sobre a proposta. De que forma elas serão beneficiadas e afetadas? Limitar os juros pode ter consequências negativas para o mercado financeiro e para a economia nacional?

As vantagens ou desvantagens devem ser atribuídas aos donos do capital do setor financeiro. As representações de classe são apenas organizações políticas que tratam dos interesses de seus associados. Juros mais elevados elevam os lucros extraordinários do setor. Desde a adesão do Brasil ao ideário neoliberal, no limiar dos anos 1990, que as grandes corporações exercem um ativismo político em defesa da desregulamentação do mercado, de modo que possam cobrar os preços que sejam suportados pelos demandantes de seus produtos. Os juros representam o preço do capital. O que estão defendendo é que o Estado Nacional não interfira nessas operações. Todavia, dada a vulnerabilidade social de grande parte da população, já passou da hora de o governo intervir para tornar essas relações mais civilizadas. Os bancos praticam um sistema de agiotagem permitida. É preciso colocar ordem nesse mercado e só o Estado Nacional pode fazê-lo. Banco nenhum vai embora em um país com 203 milhões de habitantes. Quem mais dá lucro a banco são os pobres e a classe média baixa.

Do ponto de vista econômico, o Desenrola é uma solução plausível para ajudar a população a sair do endividamento?

Não tenho os números acerca dos efeitos do programa Desenrola. Aparentemente, alguns devedores aproveitaram a oportunidade da redução de juros para repactuar suas dívidas ou quitá-las, mas não tenho os dados para comparar com períodos anteriores.

Em julho deste ano, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, afirmou que avalia extinguir o rotativo do cartão, que é adicionado sobre o saldo devedor de forma automática. Isso seria bom ou ruim para a economia? E para o consumidor?

O setor financeiro está entre os de maior poder de pressão sobre o Estado. Ninguém tomaria essa decisão unilateralmente, sem diálogo. A discussão é baixar os juros sobre o rotativo. Crédito é um produto precificado pelos ofertantes. Não se pode extinguir, simplesmente, porque o endividamento gera um risco para o setor. Por tudo isso, não cabe a discussão se é bom ou ruim, mas se uma decisão desse tipo encontraria respaldo jurídico na legislação brasileira. Quem assumiria a dívida, em última instância? O Estado?