É indiscutível que os sons do mundo vão mudando com o tempo, mesmo que seja só do “nosso mundo  do nosso tempo”. Até porque algumas atividades econômicas ou puramente banais vão deixando de existir e quando partem, deixam sempre um silêncio novo.

Nas ruas da minha infância, diariamente, a vendedora de sururu não tardava a passar a cada manhã, com seu grito inconfundível:

- Sururu fresco!

E era uma verdade aguardada. Hoje eu sei que os fregueses mais frequentes das comerciantes peripatéticas eram vistos pela vizinhança com alguma curiosidade: o sururu era barato, e comprá-lo repetidamente, na mesma semana, era um sinal de que “naquela casa” o mês havia ficado comprido demais. Mas que se danassem os invasores da vida alheia – o que valia era o prato, farto tanto quanto possível, à mesa.

O nosso molusco símbolo da culinária local, eis uma realidade, foi sumindo das nossas lagoas e chegou a um preço de iguaria nem sempre acessível ao grande público (principalmente no estado campeão brasileiro da fome). A vendedora do sururu – sim, era sempre uma mulher de corpo mais cheio e marcado pelas agruras da vida -, esta desapareceu para sempre dos becos e avenidas da cidade.

O mesmo destino tiveram os verdureiros e vendedores de frutas, anunciadas em tom bastante audível, e que a clientela, já conhecendo os horários dos ambulantes, ficavam à espreita, aguardando o anúncio desejado:

- Olha a banana!

E era muito mais do que isso no caçuá feito de cipó, multiplicado em dois, apoiado nos ombros de homens humildes a quem aprendíamos a chamar pelo nome, quase sempre precedido pelo “seu”- simples assim.

Esse comércio cotidiano inexiste já há muito tempo, ainda que persistam os consumidores dos produtos variados e fresquinhos vendidos então nas portas das casas, sempre a preços módicos. Hoje, só as feiras de bairros, supermercados e estabelecimentos especializados – de frutas e verduras - oferecem esses alimentos, cujos preços já trazem embutido o custo das lojas físicas, com seus empregados, impostos e outros insumos. O capital ganhou mais uma - e de goleada.

É claro que nem eu nem ninguém da minha geração – ou das imediatamente seguintes – haveremos de ouvir de novo a gaita do amolador de tesoura, um utensílio que se tornou facilmente descartável: envelheceu, lixo!

O mesmo destino, o silêncio, teve o vendedor de cavaco, que era anunciado em uma nota curta de um apito - eis um doce adorado pela meninada e que só pode ser encontrado agora... sabe-se lá onde. 

Já o quebra-queixo virou o terror, justificado, de dentistas, ainda que fosse nosso objeto de desejo a cada anúncio sonoro. Ao parar para atender a ansiosos meninos e meninas – principalmente –, o vendedor abria as pernas do seu tabuleiro de madeira, fincava-o ao chão e acionava a sua espátula afiada, a cortar generosos pedaços do doce feito com coco (havia outros artificiais também) e muito, muito açúcar.

Esses personagens faziam parte da fauna humana da cidade, com seus sons que prenunciavam prazer e algum conforto. Tomaram o lugar outros ruídos, é verdade, ainda mais intensos e agudos: a buzina e o motor dos automóveis; os televisores nas casas, no último volume; os palavrões com os quais alguns motoristas “cumprimentam” seus iguais e também motoqueiros, ciclistas, pedestres -, uma gente que só passa, sem nada oferecer aos que ficam.

O “bom-dia” já não se ouve com tanta frequência, porque as pessoas se tornaram, majoritariamente, desconhecidas, e a cordialidade vai sumindo apressada, porque não tem nada ali que lhe interesse, ou mesmo reciprocidade.

Não, essa não é uma manifestação de saudosismo, até porque entendo que cada coisa tem seu tempo, o que vale também para o comportamento humano e seus desejos. Se recordo desses sons da cidade, que ainda ecoam na minha memória, é porque eles se tornaram boas lembranças de tempos que me parecem melhores agora do que pareciam então - é a eterna reconstrução do passado.

Mas, cá para nós, se as notas musicais, desde os tempos imemoriais, são imutáveis, e são, a sua arrumação e encadeamento têm ocorrido por esses tempos de forma desambiciosa, sem buscar permanência e anunciando despedida. Cada canção, displicente, assim me parece, tem vida muito curta e presságio de morte prematura, porque não chega com intenção de fazer morada na memória de homens e mulheres. Claro: trato daquilo que invade e ocupa, a cada dia, o rádio e a televisão.  

E aí, gente, até para proteger uma alma que envelhece junto comigo, só me resta parafrasear os argentinos, com seu grande mestre Piazzolla:

- Tom Jobim? Cada dia melhor!