Incomoda-me ver nas páginas de cultura dos principais jornais do país a promoção dos trabalhos dos atuais artistas ditos pop, uma definição tão larga quanto imprecisa. Eles merecem, sim, estar nos grandes veículos de comunicação, mas no caderno de entretenimento (é só a minha opinião, certo?), já que cultura tem outro sentido, inclusive na antropologia.
As duplas do breganejo ocupam hoje, e não por culpa delas, praticamente todos os espaços midiáticos destinados à música, ao lado do funk e de ritmos ditos baianos. E que ninguém discuta, por inconclusivo, se o samba e o frevo nasceram na Bahia de Dorival e de seus herdeiros musicais. Um, assim me parece, brotou das senzalas; o outro, dos festejos de rua.
É bem verdade, também, que aquilo que essa turma canta em nada me incomoda, até porque vivo distante das emissoras de rádio e de TV que se dedicam às paradas de sucesso – passageiras todas. A quem garante com ênfase "que gosto não se discute", respondo apenas que ele se constrói: por contato, persistência, formação e/ou ambiente. Só se pode gostar daquilo que se conhece.
De quando em vez, no entanto, tomo um tremendo susto ao emparelhar com o que eu batizei de “trio elétrico de babaca”. São aqueles carros com som lá nas alturas, que fazem o monstro de lata e borracha trepidar até os pneus, para chamar a atenção do grande público.
Seria a tentativa de quebrar a invisibilidade social? Creio que sim. Mas que fique claro: “babaca” é o comportamento dessa gente, que está ligado, infelizmente, ao tipo de música que ela quer que todo mundo ouça, sem direito a escolha. Não creio que seja democrático. Eles haverão de preferir a Tom, Gonzaga e outros dos nossos, Sereno e Sirino, Culpado e Cupido, e por aí segue o baile - onde só deve dançar quem quiser.
Quanto aos artistas mencionados e similares, não me apraz o que eles apresentam, e apenas me mantenho distante, ouvidos moucos. Não os critico por fazerem sucesso ou terem ficado ricos com o que cantam. Nada disso! São trabalhadores que vendem sua voz a quem compra; e quem compra, paga - é do negócio. Gostaria tão somente que a garotada conhecesse o "lado b" da nossa criativa e imensa musicalidade.
Milton Nascimento provocou grande rebuliço ao dizer, em setembro de 2019, que "a música brasileira está uma merda". Não imagino que o mineiro definitivo, quando o tema são “os acordes perfeitos”, tenha manifestado arrogância e intolerância, mas apenas a sua contrariedade com aquilo que virou meme – no sentido original da palavra - nos meios de comunicação. Ele gosta de Chico, Tom, Alceu, Elis, tanto quanto admira Luiz Gonzaga, o inventor do que ficou imortalizado como a Música Popular Nordestina, parte essencial e indissociável da MPB.
Há algo mais sofisticado do que Lua e Humberto Teixeira, em Que nem jiló (“A gente lembra só por lembrar...”), ou os versos de Patativa do Assaré, em A triste partida (“Setembro passou...”)? Eles confirmam Montaigne:
- A poesia popular e puramente natural tem singelezas e graças pelas quais se compara à excelsa beleza da poesia perfeita quanto à arte.
Eis um sujeito que entendia muito mais das coisas do mundo que eu e sabia do que estava falando – o tempo o provou. Isso é arte, é cultura (além de entretenimento do melhor), asseverou o baixinho, há quase 500 anos.
Eu, particularmente, não deixo de ouvir, e não só por esses tempos de fogueira e forró, o Rei do Baião, Dominguinhos, Flávio José, Eliezer Setton, Mestrinho, Maciel Melo, Aldemário Coelho e tantos outros que mantêm vivo e permanentemente renovado o cancioneiro nordestino. São eles que me empurram para Caruaru ou para Campina Grande, a cada São João (ainda que as duas cidades enfrentem a pressão crescente do comércio local pelo produto mais fácil de vender: o de sempre).
E para dar mais munição a quem já está prestes a me xingar - se é que já não o fez -, apresento uma observação apenas para que pensemos sobre isso: parece haver uma relação direta entre a “música do momento” no Brasil e o presidente de plantão.
É lembrar que as duplas que cantam estourando os vasos do pescoço se tornaram onipresentes durante o governo Collor, sucesso que repetiram agora nos anos de Bolsonaro. Podem ser apenas coincidências, “pero que las hay, las hay”.
Bem sabemos, entretanto, que o novo sempre vem. Muitas vezes abraçado com o clássico, o eterno.
Esta semana, voltando da minha caminhada matinal, ouvi, ainda que baixinho, um forró pé de serra vindo de um carro que passava ao meu lado. Olhei pela janela aberta do veículo, curioso, para saber quem estava ao volante: era um carinha bastante jovem, o que me deu alguma alegria. Concluí, apressadamente, confesso, que a questão não é geracional, mas sim conjuntural/comercial.
Foi então que busquei o auxílio luxuoso de Chico Buarque, a batucar no meu ouvido: “Vai passar!”.