Na quarta-feira que passou, dia 10, fez noventa anos da marcante e trágica queima de livros da nascente Alemanha nazista (bücherverbrennung é a expressão idiomática que batiza essa ação insana).

Foram destruídos milhares de títulos que desagradavam ao poder recém-instalado no país que era, então, a vanguarda da ciência e da filosofia na Europa. Era um sinal ardente do que vinha pela frente. 

Entre os autores cujas obras conheceram a fúria e o fogo dos alemães, principalmente dos jovens estudantes que comandaram o massacre, estavam Marx, Walter Benjamin, Bertold Brecht, Thomas Mann, Albert Einstein, Robert Musil e o também alemão Heinrich Heine.

Este último, meio poeta, meio profeta, havia escrito quase cem anos antes: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas”. A história tratou, lamentavelmente, de provar que ele tinha razão. 

Por coincidência – e foi apenas pura coincidência -, na mesma data eu encontrei um destinatário para um livro que eu havia ganhado no final do ano passado, mas que não leria nunca: o autor é um negacionista que ganhou projeção no governo passado. Diga-se em favor do amigo querido que me presenteou, sendo um ótimo leitor e “descobridor” de grandes autores, que ele não conhecia o personagem, apenas seguiu a recomendação de uma revista de circulação nacional.

Sem constrangimento, afinal trata-se de um amigo, de pronto falei a ele sobre o escritor e sua pregação. Um tanto perplexo, ele disse em tom de blague que eu jogasse no lixo ou tocasse fogo no objeto de papel. Argumentei que jamais queimaria um livro, pela simbologia que isso tem. Ele fez eco, e imagino que deve também ter encontrado um novo dono para o exemplar que havia comprado para sua leitura.

Fato concreto: carrego comigo um apreço imenso pelos livros. Imagino que minha inexpressiva existência seria um tanto mais sem graça se eu não houvesse tido com eles um encontro tão amoroso. Confesso aos leitores e leitoras que me restam: os livros ajudaram a salvar a minha vida quando tudo parecia definitivamente perdido.

Mas como uma má notícia nunca vem sozinha - os noventa anos do bücherverbrennung -, leio em um artigo literário que uma universidade de Goiás vetou do seu vestibular um livro do escritor Marçal Aquino, ganhador do Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira. Resultado da pressão de um deputado estúpido, o livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios saiu da lista para vestibulandos divulgada pela mesma escola (?).

O parlamentar, que ataca o projeto das big techs, a que chama de PL da censura, virou ele próprio uma autoridade intelectual e moral, coisa de gente hipócrita, a queimar livros - mesmo que de maneira simbólica.  Ele não haverá de saber, mas graças a sua raivosa iniciativa eu adquiri o livro de Marçal Aquino e já estou lendo (e gostando).

Nesses tempos esquisitos, os EUA, país de tragédias violentas quase que cotidianas, a censura de livros voltou à moda, seguindo a mesma senda do trumpismo, o fascismo atualizado de lá. Só de junho a dezembro do ano passado, cerca de 1.500 títulos foram banidos de escolas americanas, em 37 estados, considerados impróprios para os estudantes. Enquanto isso, sites nazistas e de propaganda de armas/pregação de violência vão fazendo a cabeça de crianças e adolescentes, com as consequências dolorosas que se repetem e bem conhecemos.

Ainda em 1956, nove anos após a Segunda Guerra Mundial, o cineasta francês Alain Resnais dirigiu e apresentou ao público o documentário Noite e Neblina. São apenas 32 minutos – está disponível no Mubi – discorrendo e mostrando os horrores nazistas nos campos de concentração. Uma pequena obra-prima.

É de se atravessar o filme com o peito sangrando, mas prestando muita atenção ao definitivo aviso de Resnais: o que vemos ali não é a última manifestação da estupidez humana, resultado apenas de um povo e de uma época. 

Só nós podemos impedir que Heine tenha razão sempre que o fogo se acende.