Não era uma - eram várias as vizinhas “fofoqueiras” que tínhamos na velha Buarque de Macedo.
Formavam uma rede de olhos e ouvidos sempre atentos às coisas que fazíamos – de bom e de ruim. E todos fomos crianças e adolescentes para saber hoje, pelo espelho do retrovisor, que aprontamos coisas das quais podemos muito bem nos envergonhar, ainda que a distância.
Coloquei entre aspas o adjetivo acusador – fofoqueiras – para dizer que esse julgamento é absolutamente do passado, de quando éramos os objetos a serem vigiados e delatados pelas ações que praticávamos. E não, exatamente, pelo bem que fazíamos "sem olhar a quem”.
Na verdade, agora entendo, elas – eram sempre as mulheres, mães dos meninos e meninas da Buarque de Macedo e arredores – a manter um serviço de vigilância e fiscalização essencial para o crescimento dos seus filhos e dos filhos dos outros. Nós, por exemplo.
Não exalto aqui o que parece ser apenas a espionagem amadora, mas o cuidado materno que se estendia a todos do bando. Isso, evidentemente, fazia uma grande diferença no conhecimento que os criadores tinham das suas crias – por mais que estas fossem dissimuladas e sonsas.
Lembrei-me dessas mulheres, e até de seus nomes, na semana que passou para lhes reverenciar o papel educativo que, ao fim e ao cabo, elas tiveram na minha formação e na de tantos e tantas que circulavam naquele pedaço da cidade que tínhamos como tão nosso.
Sim, porque nesse momento da vida brasileira, em que o pavor se espalha pelas casas de milhões de crianças e adolescentes no país, todos assustados com os últimos acontecimentos aterradores nas escolas e, pasmem, até em creche, fico a lamentar a ausência delas – personagens só possíveis então – para ajudar a identificar as falhas iniciais de caráter que iam surgindo entre os pequenos e pequenas que andavam e aprontavam nos seus territórios.
Imagino que fui punido em casa algumas vezes, e sei lá quantas, graças à atividade incessante das minhas vizinhas “fofoqueiras”. Sob protestos e raiva, bem sei. Mas nesses tempos em que meninos e meninas se enfiam em seus quartos a compartilhar coisas proibidas e desejadas nas redes sociais, o olhar que perscruta, atento, há de fazer uma falta imensa.
Pais e mães, por cansaço, pouca disponibilidade de tempo e, também, por comodidade, já não se debruçam com o necessário cuidado para a sua descendência. A escola, bem sabemos, não existe para “consertar” gente. Ela é parte essencial da nossa construção, trazendo-nos aquilo que nem sempre podemos obter em casa: o conhecimento mais específico, a preparação, principalmente, para a vida profissional. E, claro, a convivência e aprendizado de tolerância com a diversidade - quase nunca alimentados nas redes sociais.
E aí, do outro lado da tela, pululam e ululam imagens que atraem, palavras que seduzem e instigam o ressentimento, grupos obscuros que acendem e estimulam o lado primordial de cada ser ainda em formação de caráter - tudo se tornando combustível para o terror tão próprio dos nossos dias.
Choca-me a ideia de levar para cada escola um profissional de segurança armado, como a mais eficaz medida de prevenção à violência. Não, eu não desconheço a realidade que está posta, e entendo o medo, que nós da imprensa ajudamos a espalhar, mas quero crer que precisamos ir à raiz – ou raízes – de um problema social, político e geracional que tanto tem nos assustado. É tudo complexo demais para que possamos eleger uma alternativa apenas como aquela que haverá de nos trazer conforto e tranquilidade - por mais que seja popular e consensual.
O mundo mudou, é verdade, mas a nossa espécie, apesar das aparências, continua a mesma na sua essência: o medo gera o ódio, que gera o preconceito, que gera a violência. Onde e quando quebrar essa ordem é o grande desafio de todos nós, pelo menos daquelas e daqueles que se importam com o outro, que conservam o que se convencionou chamar de consciência coletiva e/ou social.
As vizinhas “fofoqueiras” da Buarque de Macedo e arredores sabiam, com todas as limitações da época e até do seu conhecimento profissional, identificar com mais presteza o ovo da serpente, ainda no ninho.
Elas não mais existem. Aquele mundo não mais existe. O que ficou foi a continuação da Humanidade com suas permanentes buscas, contradições e medos.

Ricardo Mota