O Mundo Muçulmano, de Peter Demant, é um mergulho profundo num universo plural, de facetas diversas, bem mais rico do que a mesmice xenofóbica difundida no Ocidente. O fundamentalismo islâmico está lá, ao lado de lições de tolerância e convivência pacífica, como deve ser em todas as religiões – ou na ausência delas. 

Inegável é, porém, que as mulheres do Islã ainda ocupam um espaço muito aquém do que ainda haverão de conquistar. Em algumas regiões onde o islamismo é dominante, são elas as principais vítimas dos preconceitos fundamentalistas, com suas consequências cruéis. 

São centenas os casos registrados, desde a década de 1980, de mutilações ou desfigurações provocadas por ácido e ações mecânicas em mulheres que simplesmente ousaram exibir os cabelos em público. O extremo, a execução, é a pena para as que são julgadas infiéis a Alá ou aos homens – seus “donos” (muita gente por aqui também gostaria que fosse assim no Brasil).

O cristianismo também carrega a sua culpa histórica pelos crimes praticados contras as “bruxas”, milhares de mães, avós, esposas e filhas consideradas hereges ou seguidoras de satã.

A “caça às bruxas” – no catolicismo, principalmente, mas não só nele – teve seu período mais dramático entre os séculos XIV e XVII, com direito a um manual de identificação daquelas que faziam da feitiçaria sua prática de vida.

O Martelo das Bruxas, escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, em 1486, apresentou alguns sinais evidentes nas mulheres que fizeram por merecer a tortura e a morte - apedrejadas ou calcinadas pelo fogo: a indicação de chás para o tratamento de dores e doenças, tão usuais na medicina popular, muitos com eficácia reconhecida depois pela ciência, foi fatal para tantas delas.

As parteiras que deixavam bebês morrerem pagãos praticavam tão somente uma ação diabólica, a ser punida com toda a severidade que parecia necessária aos “homens de Deus”.

Nada pior, no entanto, do que a tortura, que levava quase sempre à confissão do crime. Se ela não fosse extraída, isso só confirmava a culpa da “bruxa”. Afinal, dizia a crença popular - estimulada por sacerdotes -, essas mulheres andavam pelos ares, exerciam o canibalismo e fabricavam filtros de amor (deviam ser uma delícia).

A perversidade praticada era tamanha que o piedoso jesuíta Friedrich Von Speer publicou na Alemanha, em 1631, Precaução para os acusadores. Uma narrativa sobre as superstições e os tantos estragos e mortes odiosas que elas provocaram.

Os rumores, maledicências e delações viravam indícios, os indícios viravam provas e o mundo se esvaía em dores e em sangue inocente.  Diz ele:

- Depois que, sob o estresse da dor, a bruxa confessa, a sua situação é indescritível. Não só ela não consegue escapar de si mesma, mas é compelida a acusar outras pessoas que não conhece, cujos nomes são frequentemente colocados na sua boca pelos investigadores ou sugeridos pelos carrascos.

Ao final, o padre alemão pergunta desolado: “Ao entrar pela primeira vez na prisão, por que não admitiu tudo o que eles queriam? Oh mulher estúpida e louca, por que você quis morrer tantas vezes, quando poderia ter morrido apenas uma vez?”  

As torturas? Inimagináveis para uma mente sã, que abomina o fanatismo e exalta a compaixão: os banhos em água escaldante a que fora acrescentada cal, a cadeira de ferro incandescente, as botas de couro onde se despejava chumbo derretido... E paremos por aí.

É uma história que não podemos ignorar. Pelo contrário, devemos conhecê-la para entender o quanto as mulheres tiveram – e têm – de lutar por um lugar ao sol, em qualquer sociedade, para que sejam tratadas com respeito e sincero sentimento de igualdade.

A misoginia, dura constatação, continua sendo a mãe de todos os preconceitos.