As narrativas que tenho lido ou ouvido de ataques sexuais, mesmo os não consumados, me deixam impactado, e embora carreguem a verossimilhança de quem sabe que a dor do momento será a dor de sempre, sugerem a criação de uma mente perversa.

E por mais que o tempo opere repintando as cenas, cobrindo-as com um véu cada vez mais espesso, o que há de valer para a mulher violentada, assim me parece, é a tinta grudada à tela - que não se desmancha. Eis que o pavor de cada vítima exala um cheiro de morte da construção da Civilização. 

As denúncias acontecem cada vez mais, uma após outra, em todo canto ou lugar do planeta, escancarando uma doença da espécie que se jacta de ser racional, mas que não consegue superar suas emoções mais primitivas. A diferença, o que é fundamental, é o modo como cada sociedade lida com um crime ainda tolerado em alguns países – o que inclui o Brasil (já melhoramos nesse quesito).

Ao fim e ao cabo, haveremos de entender: o machão não gosta de mulher, embora divulgue seu apetite por elas (no plural), em narrativas de infâmia e sordidez. Misógino, o tal gosta é dele mesmo, se basta na sua imaginação de poderoso ante a fragilidade física ou psíquica das suas presas. Poucas coisas, confesso, mexem tanto com o meu sentimento de repulsa e desprezo por alguns (des) semelhantes. 

Existem tipos variados entre os atrozes de plantão: os que batem fisicamente, que praticam o ato à força - e são os mais visíveis para a necessária punição -, mas há também aqueles que se dedicam à violência moral, destruindo reputações, espalhando nomes e aventuras que possam fazê-lo ser visto como um macho alpha, comandante em chefe de uma tribo imaginária e/ou grotesca (esses patifes quase nunca são punidos, apesar do mal que praticam). 

Que ninguém se iluda: assim com as mulheres, assim com o resto do mundo - independentemente do credo religioso ou político.

No grandioso M, o filho do século, o escritor italiano Antonio Scurati conta algumas proezas militares do poeta Grabielle D’Annunzio, uma das principais referências intelectuais do fascismo nascente na Itália pós-Primeira Guerra Mundial (o livro traz a trajetória de Mussolini, o M, até a sua ascensão ao poder).  

Um inegável escroque, ainda que elogiado criador literário, D’Annunzio, ao enfrentar seus adversários e inimigos, gabava-se “de ter fornicado com centenas de mulheres”. Que, aliás, os protofascistas da Milão de então tratavam pela desprezível alcunha de “urinóis de carne”. 

O pior é que essa gente ainda vive entre nós, ainda grita e xinga, e ainda se multiplica feito ratos em tempos de comida farta e em meio à sujeira.

Não gosto de usar a linguagem própria das redes sociais, mesmo quando se referem aos personagens sórdidos dessas ações que desmentem o “homem natural”, mas confesso que tenho dificuldades de encontrar uma palavra que substitua asco, com a mesma precisão, para definir o tipo de emoção que me causam esses personagens de alma onde a luz não consegue entrar.

Uma breve história do mundo real.

Uma amiga muito querida, que sofreu um estupro na juventude - tratado com muita discrição por ela e pela família -, demorou mais de 20 anos para me contar a sua terrível experiência. Aos prantos e trêmula durante toda a narrativa, conseguiu a um alto custo emocional concluir o enredo da sua tragédia - pessoal, mas que feriu a tantos.

Depois, nunca mais a vi. Viajou para bem longe, talvez para onde imaginasse que a dor tatuada em sua alma não iria mais alcançá-la.  É possível que nos tempos de agora seu desabafo fosse público, atenuando – quem sabe? – a pesada carga de sofrimento que passou a transportar desde então.

Quanto ao machão, de qualquer estirpe, ninguém há de fazê-lo gostar das mulheres por inteiro, como seres íntegros, de corpo e alma - por mais que se tente e se insista. Há, entretanto, cada vez mais meios para obrigá-lo a respeitá-las. 

E estes devem ser usados sem parcimônia - sempre.

A isso também chamamos de Civilização.