Assisti ao filme Pelé eterno em companhia de meu filho Luiz, quando ele tinha dez anos de idade. Finda a sessão, sem olhar para mim, ele quase que só balbuciou: "Pai...” (silêncio). Tinha dito tudo. Estava encantado com o que vira, e expressava sua perplexidade com o que se passara na tela.

Pelé era uma novidade para ele - e quantas novidades o Rei nos apresentava em cada exibição! Disse-lhe, em tom jocoso, que, quando batia bola, fazia aquilo e mais alguma coisa. Seu sorriso maroto, de canto de boca, apontava que sabia que eu apenas havia cometido uma inverossimilhança (não dava nem para ser mentira).

Tempos depois, apresentei-lhe Garrincha, em documentário histórico. Então, não houve comentários durante a exibição. Luiz gargalhava e zombava dos zagueiros, que iam em vão, aparvalhados, tontos, de um lado para o outro, em busca do anjo de pernas tortas. O que me surpreendeu foi o seu comentário ao término do "espetáculo": "Ele hoje não poderia mais jogar. Os caras iam quebrar as duas pernas dele".

Triste verdade. Como verdade é, também, que alguns "joões" até tentaram, mas não havia nas arquibancadas o clima favorável à carnificina. Não existia entre os jogadores de futebol, na era Garrincha-Pelé (com os dois em campo, o Brasil nunca perdeu uma partida), a convicção de que o mais querido de todos os esportes não permite a finta desmoralizante, a zombaria do drible que desmantela o esqueleto. Hoje tudo parece ferir a "honra" dos atletas.

Garrincha gostava da bola, de vê-la sempre em seus domínios, rodopiando e ziguezagueando sem qualquer compromisso com o resultado. O vastíssimo folclore criado em torno do mais inventivo e “inconsequente” futebolista de todos os tempos tem um tanto de injustiça. A começar por sua fama de pouco inteligente. Logo ele, Garrincha, que adorava pôr apelidos precisos em todos os colegas e desafetos, nos conta Ruy Castro, no seu imperdível Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha. Carlos Nascimento, supervisor da seleção brasileira de 1958, ganhou o seu: "Prisão de ventre".

Era a vingança de Garricha por tê-lo chamado de "irresponsável" após um jogo preparatório para a Copa do Mundo daquele ano. A partida era contra a Fiorentina, em plena Itália. O Brasil já vencia por 3 a 0 quando o anjo torto resolveu fazer o dele - à moda Garrincha. Driblou quatro zagueiros enfileirados; o goleiro Sarti saiu desesperado na tentativa de chegar à bola - novo drible. O gol ficara vazio, mas o "endiabrado" viu de esguelha que o pobre número 1 voltara à "arena" - e foi fintado mais uma vez, indo agarrar-se à trave (a outra opção era o chão). "O Chaplin do futebol”, na inspirada definição do jornalista Sandro Moreyra, apenas caminhou com a bola até dentro do gol; deu-lhe um toque por baixo, o necessário apenas para segurá-la com a mão; botou-a debaixo do braço e voltou para o meio do campo.

O estádio em silêncio de incredulidade, e seus companheiros a xingá-lo para valer. Ele? Já tinha feito o que achou óbvio. O mundo que se danasse.

"Não vai dar certo", disse dele, já no meio daquela Copa, o preparador físico Paulo Amaral ao técnico Feola - que mantivera Garricha na reserva (de Joel) nos primeiros jogos, mas resolvera mudar de opinião. Paulo insistiu:

- Garrincha não ouvirá suas instruções. No Botafogo, durante a preleção tática, nós o mandamos ir jogar pingue-pongue. É imprevisível em campo. Se tem o gol aberto à sua frente, é capaz de passar a bola a um companheiro. Ou, então, se está completamente sem ângulo, resolve chutar. Só faz o que lhe dá na cabeça no momento.

E Garrincha fez tudo isso e muito mais na sua primeira Copa (a de 1962, ele ganhou quase que sozinho). Que o diga o lateral francês, o festejado Lerond. De tantos dribles que tomou, ouvindo as gargalhadas do público, levou da Suécia, na bagagem, uma vergonha que o acompanhou por anos a fio. Resistia em ver o filme daquele memorável Brasil 5 x 2 França, com três golaços de um pretinho ainda mirrado que viria a ser conhecido como Rei. Mas, um dia, o zagueiro aceitou encarar o replay do jogo da sua vida:

- Só então compreendi como fui ridículo.

É isso: “O que dá pra rir dá pra chorar, problema de hora e de lugar” (Billy Blanco).