A expressão que dá título a este breve texto domingueiro, nós encontramos, repetidas vezes, no imprescindível Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, o “Mestre de Apipucos”.
A obra, grandiosa, foi publicada pela primeira vez em 1933, mas até hoje é alvo de muitas polêmicas, mesmo porque o conhecimento avança, e o que nos parece a cada quadra a última palavra, principalmente entre as chamadas “humanidades”, torna-se obsoleto e ultrapassado – quando não algo a se deixar para trás como um mal-entendido.
Sem querer entrar na polêmica, sendo apenas um curioso, opto por ficar com o adoravelmente selvagem Darcy Ribeiro, para quem “poderíamos passar sem qualquer de nossos ensaios e romances, ainda que fosse o que melhor se escreveu no Brasil. Mas não passaríamos sem Casa-grande & senzala sem sermos outros. Gilberto Freyre, de certa forma, fundou – pelo menos espelhou – o Brasil no plano cultural tal como Cervantes à Espanha, Camões à Lusitânia, Tolstói à Rússia, Sartre à França".
Há muito de beleza e erudição nesta declaração de amor.
Mas, e a sífilis?
- O negro se sifilizou no Brasil... A contaminação em massa verificou-se nas senzalas coloniais... Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues (sífilis) as negras das senzalas.
A nossa sifilização data do século XVI, diz Freyre:
- A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno.
A narrativa do “gênio de palheta mais rica e iluminada que estas terras antárticas ainda produziram” (Monteiro Lobato) beira a crueldade, dando uma dimensão real do que foi a escravização de negros e índios no Brasil.
Por exemplo: cria-se, então, que o melhor remédio para o sifilítico era desfrutar de uma “negrinha virgem”. Assim, negras eram “tantas vezes entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes brancos e já podres de sífilis das cidades”.
Se os racistas de plantão não se tocam com isso, nada mais será capaz de fazê-lo.
A extensa, profunda e bela lição sobre a formação do povo brasileiro se desdobra em mais de 700 páginas, a nos atiçar a curiosidade e nos fazer entender por que e como chegamos até aqui, carregando o sofrimento de povos explorados – a começar pelos indígenas – a quem devemos tanto, assim como suas alegrias e ricas culturas.
Deixando um pouco a Sociologia e invadindo a Biologia (evolutiva), vale a pena entender as estratégias e artifícios que os seres microscópicos encontram para se superar e a nós, indivíduos dessa espécie boçal e arrogante (o coronavírus é outra bela lição, mas acho que não aprendemos).
A sífilis, transmitida sexualmente - pelo Treponema pallidum - foi identificada pela primeira vez na Europa, ainda no século XV. Então, caracterizava-se pelas pústulas que cobriam o corpo do moribundo, da cabeça aos joelhos, fazendo com que a carne apodrecesse no rosto das suas vítimas, levando-as à morte em pouco tempo.
Quem queria chegar perto de um doente com esses sinais tão monstruosos?
Pois não é que as espiroquetas – bactérias – da sífilis evoluíram e se mantiveram “escondidas” no sangue contaminado, permitindo aos doentes viverem mais tempo, mas espalhando um mal que perdura até hoje, principalmente nas populações mais pobres (como sempre acontece).
O Brasil sobreviveu à colonização brutal – como toda colonização –, sendo a sifilização “apenas” um capítulo doloroso da nossa história.
Mas, cá para nós, negar o avanço do conhecimento, da ciência, como ocorre hoje no Brasil, é nos fazer voltar no tempo, nos entregando ao maior de todos os males: a estupidez humana.

Ricardo Mota