Imagino que muitos dos leitores e leitoras deste espaço domingueiro se depararam, esta semana, com a notícia sobre o zombeteiro protesto de Chico Buarque de Holanda, o genial compositor da MPB – um clássico!
Foi num show da sua turnê, que infelizmente não vai chegar por aqui, que Chico se saiu com esta:
- Me chamam de mortadela, de esquerda caviar, de mamífero nas tetas do governo. Não me incomodo mais. Podem me chamar até de tchutchuca, mas de comprador de música, não. Eu não compro música.
O que eu lamento é que a nota, em regra, saiu sem a devida explicação, porque este é um ótimo exemplo da distorção e do crime que se pode praticar pela rede mundial de computadores.
Se me permitem, vamos a ela. E vou começar com uma experiência pessoal, o que me põe como testemunha do espalhamento de uma mentira inteira com formato de meia-verdade (e nunca a mentira teve pernas tão longas e ligeiras).
Era um sábado, dia do meu encontro semanal com amigos queridos, da década passada. Eu cheguei ao Akuaba, então comandado pelo saudoso Osvaldo, e o Fredão já me esperava indignado:
- Você viu a confissão do Chico?
- ????
- Ele dizendo que compra música. Essa foi demais!
Ato contínuo, meu amigo da vida toda - que nos deixou em 2018 - mostrou o que recebera por e-mail. Creiam: era o próprio Chico “confessando” que comprava suas canções de um compositor desconhecido, de origem árabe e de nome Ahmed.
A ficha caiu rapidamente. Eu já havia visto, e por mais de uma vez, a declaração “inteira” do compositor mais sofisticado e prolífico da nossa melhor música (ainda que não seja a mais tocada ou vendida, mas este é outro departamento – o comercial).
Ao ficar sabendo que o Fredão não tinha o CD Carioca, de 2006, do Chico, expliquei a ele as circunstâncias da confissão do novo grande réu nacional, denunciado como comprador de músicas. Junto com o disco, um DVD trazia o making off da gravação: o Chico brincando no estúdio, e os músicos que o acompanhavam se divertindo, num momento de necessária descontração do exaustivo trabalho (destaco a faixa Porque era ela, porque era eu. O cara também é leitor e fã de Montaigne).
O que aconteceu, obviamente, é que por malícia ou brincadeira alguém resolveu, dez anos depois, editar a fala do Chico - absolutamente verossímil, afinal era o próprio anunciando ao mundo o seu crime - e jogá-la no esgoto da internet, a parte podre da rede mundial de computadores.
Divertimo-nos muito com o gracejo, ainda que soubéssemos que os inimigos do Chico, e ele há de tê-los em quantidade, continuariam a espalhar a “boa nova”- para eles (e até hoje, pelo visto). Afinal, ser tão lúcido e talentoso em qualquer tempo ou lugar não acontece impunemente, imagine num país polarizado, em que o ódio e a ignorância temperam as relações humanas e cada vezes mais desumanas.
O que me pareceu ruim então - e ainda nem vivíamos a pandemia das redes sociais, que cria e alimenta tanta fé cega e farsa amolada – piorou e muito de lá para cá. Aumenta o volume de informações criminosas na mesma proporção que cresce o número de crédulos de todos os credos.
Recentemente ouvi, impactado, a pergunta de um vendedor numa farmácia do meu bairro. O jovem, muito cordial e solene, ao me reconhecer, passou a indagar sobre temas que voltaram a ser atuais, ainda que do tempo do ronca (expressão resgatada, recentemente). Repliquei o seu comportamento e fui respondendo com delicadeza, evitando aquecer o diálogo, até porque não era o caso.
Mas eis que veio a Bomba H (literalmente):
- O que o senhor acha do Tratado do Apocalipse?
- De quê?????
- Do Apocalipse, assinado pela ONU e pela Organização Mundial de Saúde.
- Para acabar com o mundo?!
- Sim, claro.
- Onde você viu isso?
- No meu grupo de zap todo mundo já recebeu várias mensagens, para que a gente se prepare. O senhor não sabia disso não, é?!
Seu tom revelava perplexidade e ironia diante da minha insana ignorância, sendo ele o informante, em primeira mão, de algo tão espetacular. E logo a quem, por obrigação profissional, deveria saber em detalhes que o fim está próximo, graças ao acerto entre dois importantes organismos internacionais.
Meneei a cabeça, numa mudez que só o grande cogumelo atômico seria capaz de provocar aos humanos que o testemunhassem, prevendo o desfecho do novo Cretáceo.
Saí dali com a desconfiança de que, sim, o “meu” mundo estava prestes a se desmanchar.

Ricardo Mota