Talvez não haja prova maior da minha total incapacidade para ser um crítico literário do que a minha relação com Dom Quixote, considerado uma das grandes matrizes da literatura ocidental.
Como se pode depreender, essa relação não é exatamente amigável ou de afetos confessos: tentei, por duas vezes, ler a grande obra de Cervantes, mas sem muito sucesso (mesmo sendo apaixonado por Dostoiévski e Guimarães Rosa, dois autores considerados difíceis por muitos). Na primeira, e faz tempo, só conclui o volume I. Na outra oportunidade, foi a frustração que me dominou no meio do segundo tomo, pelo tédio.
Seria uma literatura menor?
De jeito nenhum. Qual escritor, de qualquer língua ou nacionalidade, seria capaz de conquistar o coração e a mente do meu amigo e poeta Sidney Wanderley e de Ariano Suassuna (que para alguns era “apenas” um grande humorista)?
Aliás, com o autor do Auto da Compadecida pude "enfrentar" um embate delicioso, em que levei a pior, é verdade: fui agradavelmente derrotado, mesmo sem ser convencido por ele – o que há de valer muito pouco para quem acompanha essas crônicas domingueiras.
Foi numa entrevista com Mestre Suassuna, e já se vão anos de escapar da memória, em que eu comecei indagando sobre a obra de Cervantes e seu anti-herói - sabedor da sua paixão. Eis que o escritor, professor, nordestino e amável personagem, chegou ao tema provocado: Machado ou Lima Barreto?
Uma bobagem sugerida por mim, é verdade, mas que me deu a oportunidade de conhecer a ígnea paixão do meu ilustre entrevistado por outro maiúsculo escritor brasileiro: o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma.
À minha curiosidade quase juvenil sobre suas razões, ele respondeu:
- Policarpo Quaresma é o nosso Dom Quixote.
Imagino, apesar de não ser o mais indicado a dizê-lo, que Mestre Suassuna está prenhe de razão. Mas esclareço ao leitor e à leitora dessas mal traçadas linhas que guardo forte admiração e empatia pelo nosso Lima Barreto, um escritor negro em terra de branquelos boçais, humilhado e, acima de tudo, de raro talento.
Além do ótimo Policarpo..., sugiro como leitor, a quem se interessar possa, Memórias do Escrivão Isaías Caminha, um retrato perfeito de uma redação de jornal desde quando foi lançado, em 1917, até os dias que ainda virão. Coisa de quem soube ler a alma humana, no que ela tem de imutável, uma condição que só os verdadeiros artistas carregam – e por isso os invejo.
Esta semana, deu-me saudade do Lima e de suas diatribes contra a hipocrisia nacional (?). A partir de uma conversa com um amigo, indignado com um desses sujeitos que usam e abusam do argumento da autoridade, reli de novo o divertido conto O homem que sabia javanês. Não darei spoiler, não vem ao caso, até porque a obra tem seu tamanho intelectual e moral medido não pelo número de páginas com que se apresenta ao grande público, mas pelo tanto de revelador daquilo que nós somos.
Lembrando Schopenhauer, em A arte de ter razão: “Os incultos têm um particular respeito por floreios gregos e latinos”. Até por isso, o cínico personagem de Lima, Álvaro batizado, fez carreira na diplomacia brasileira do início do século XX, ao aprender, astuciosamente, vinte palavras do mencionado idioma.
Podemos entender que, em qualquer tempo e lugar, a ignorância é sempre muito perigosa, principalmente quando nos deparamos com a inteligência da esperteza. É claro que ninguém, nem a mais erudita criatura, haverá de cobrir, minimamente, todas as áreas do conhecimento. Mas talvez seja o caso de, sempre que possível, duvidar da autoridade que argumenta com as certezas dos deuses. Cultivar um saudável ceticismo pode ser uma alternativa inteligente.
Quem sabe não será o caso de dizer, como fez Lima Barreto em sua pequena-grande obra, ao se deparar com algum desses tipos:
- Lá vai o sujeito que sabe javanês.
Se possível, em tom de deboche e em homenagem ao escritor brasileiro que morreu louco - talvez porque fosse a alternativa que lhe restou.

Ricardo Mota