Eric Hobsbawm tornou-se conhecido e respeitado em todo o mundo pela sua mais importante obra: A era dos extremos. Mas sua produção intelectual e acadêmica é muito mais extensa.
Em Bandidos, por exemplo, ele desmonta o mito do cowboy do Oeste americano – uma invenção, basicamente, do cinema - e cria a categoria dos “bandidos sociais”, em que insere o brasileiríssimo Lampião, ainda cultuado no Nordeste (e insistentemente no cinema brasileiro). Aliás, símbolo de um velho preconceito, também, contra a gente de cá - o “novo cangaço”, por exemplo, já está consagrado pela grande mídia nacional, que tão bem copiamos.
Mas é no atualíssimo Globalização, democracia e terrorismo que o historiador britânico (nascido em Alexandria, Egito) traz uma constatação que vem a calhar neste breve texto domingueiro: o principal avanço das sociedades humanas nos últimos 150 anos é o papel que as mulheres passaram a ocupar em atividades que eram, quase que exclusivamente, destinadas aos homens (se “machos”, melhor ainda).
Ao tratarmos com honestidade a tragédia humana, em todos os tempos, veremos que a presença da mulher é obrigatória - e como vítima, que fique claro. Em tempos de agora, não há de ser mimimi ou a simples vocalização do politicamente correto, a crescente denúncia de violência contra a mulher - por ela ser mulher -, que se replica a cada noticiário, quase sempre praticada por homens que juram que gostam da companhia e do afeto feminino (cá para nós, duvido muito e cada vez mais).
Estamos falando do mais velho entre todos os preconceitos, a misoginia, anterior ao racismo e à xenofobia, e que se manifesta de várias maneiras até hoje, contando desde os primeiros agrupamentos humanos. Uma delas, observem, é o assassinato social das mulheres, difamadas e condenadas por um comportamento que para os homens (medíocres, ressaltemos) é tido como uma qualidade de gênero. Se são elas, pu...! Se eles, machos! E aí, os viris representantes da espécie Homo bobus tratam de espalhar suas proezas, independentemente de terem mãe, irmã, mulher e filha (pobres delas!), talvez vítimas também de outros iguais a eles.
Nos primórdios da Biologia, a mulher era tão somente o invólucro em que o homem inseria um minúsculo ser humano completo (uma espécie de bolsa de canguru interna), que iria crescer dentro dela. Para completar, veio a Filosofia, replicando essa convicção e tratando com desdém a figura feminina. Na quase sempre idealizada Grécia antiga, ela não tinha voz nem vez, e assim nasceu a Democracia: pelas mãos e pela força dos homens, que até hoje não entenderam muito bem o seu real sentido (ou você acredita que é democrático morrer de fome?). Quanto à mulher, ei-la condenada ao silêncio.
Um dos episódios mais violento da história humana, sendo a mulher a vítima preferencial, tenha sido a Inquisição ("Misericórdia e Justiça"). Por que não chamá-las de bruxas, o que as desumanizaria progressivamente? E assim surgiu o primeiro marketing de uma política aniquiladora. Mulheres que receitavam e preparavam chás, ou as que traziam sinais no corpo indicando um coito com o íncubo, elas mesmas, terminaram queimando no fogo virtuoso dos que miravam o céu para as suas almas. Sessões de tortura, de fazer corar os tiranos mais perversos já conhecidos, eram praticadas com gosto e prazer, numa demonstração da capacidade humana de fazer o mal em nome do “bem”.
A palavra feminicídio, o assassinato de uma mulher por ser mulher, não está no Houaiss. Trata-se, pois, de um neologismo, sofisticado até, mas que identifica uma velha e primitiva prática da nossa espécie, repetida desde os tempos da caverna (e ainda não havia Platão) pelos mais fracos e estúpidos bípedes implumes.
Triste é saber que ainda haveremos de inventar novos vocábulos para nomear os males que sempre haveremos de praticar contra quem nos parecer mais frágil e indefeso. Afinal, "a covardia é a mãe da crueldade" (Michel de Montaigne).

Ricardo Mota