Crônica do Mota: O menino que foi trocado por uma égua

26/06/2022 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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Ler o Pasquim, no início da década de 1970, era um ato de rebeldia dos meninos da Buarque de Macedo e arredores. Eu, Fred, Mário Agra, Marcos Calheiros e outros vivíamos por ali nas praças e gramados (um exagero), a praticar o esporte bretão e outras traquinagens, nem sempre reveláveis ao público presente - que fiquem por lá mesmo, no passado.

Se não éramos militantes, ainda - e não éramos -, já tínhamos “amigos presos/ amigos sumindo assim” (Não chores mais, com Gilberto Gil), o que nos fazia estar sempre atentos aos atos e perigos da ditadura. O Pasquim era parte da nossa subversão. E, cá pra nós, combater o bom combate com humor, irreverência, ainda que com impiedade, é algo que faz muita falta nos tempos de hoje. Quase todos, assim vejo, estão enfezados demais.

Aquela turma , que criava e inventava para dizer suas verdades, consagrou nomes definitivos na imprensa brasileira, com destaque óbvio para Millôr, Henfil, Jaguar, Sérgio Cabral (o pai), Tarso de Castro, Paulo Francis, Ziraldo, Ivan Lessa e mais uns tantos - que se perderam no tempo, mas cumpriram seu papel na nossa história do papel impresso.

É o que nos traz o também jornalista Márcio Pinheiro em Rato de redação – Sig e a história do Pasquim, a biografia do semanário que conquistou gerações de brasileiros ávidos por liberdade e risos escancarados (Sig, de Sigmund Freud, era o ratinho criado por Jaguar e que virou presença garantida nas páginas do jornal).

E como o humor há, sempre, de exercer a sua iconoclastia, nem mesmo os colaboradores eram poupados. Gente do tamanho de Chico Buarque, Caetano Veloso, Leila Diniz, todos grandes e reagentes à turma da escuridão. O poetinha Vinicius de Morais foi dos primeiros a dar de graça um pouco do seu valioso talento, escrevendo para o hebdomadário. Que não fosse por isso: seus novos colegas de fazer acontecer contaram à boca larga que o autor de Eu sei que vou te amar, ao voltar ao Brasil, após ser cassado pelo golpe militar – ele era diplomata de carreira –, chegou chegando. A versão: ao se dar conta do boato de que o Ministério das Relações Exteriores estava punindo os funcionários que fossem envolvidos em “corrupção, pederastia e alcoolismo”, Vinicius gritou apressado, já na chegada ao aeroporto:  "Eu sou o bêbado! Eu sou o bêbado”.  (Calma, gente: os tempos eram outros).

Entre as inesquecíveis entrevistas do Pasquim – sempre feitas em bando - está a de Madame Satã, uma personagem mítica do Rio de Janeiro . Foi publicada na edição de número 95, em 29 de abril de 1971, e está disponível no volume 1 da Antologia do Pasquim, que traz o slogan: "O Pasquim não tem capa porque quem tem capa escapa”.

Entre o surpreendente e o pungente, o malandro, homossexual assumido e divulgado, contou com humildade suas proezas: depois de passar 27 anos e oito meses preso, resolveu continuar morando na Ilha Grande – prisão histórica do Rio de Janeiro -, o que não o impediu de virar uma lenda nas áreas boêmias da "Cidade Maravilhosa". Conhecido por sua valentia, capaz de botar para correr, sozinho, uma guarnição da polícia, Madame Satã não se jactava dos seus feitos: sabia-se temido, mas não usava o medo que provocava em seu favor.

Na longa entrevista, ele negou, por exemplo, que matou o bem mais jovem compositor Geraldo Pereira – Escurinho, Bolinha de papel, Pedro  Pedregulho e segue –, sem se esquivar do feito: provocado pelo sambista, contou, foi xingado com “desaforos, palavras obscenas e nem sei dizer essas coisas”.

Ato contínuo: 

- Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele e ele caiu com a cabeça no meio fio. E morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo.

Com jeito simples, o negrinho pequeno e magro, de vocabulário marginal aprendido nas ruas e vielas do país, relatou que nasceu em 1900, no interior de Pernambuco. Batizado João Francisco dos Santos, foi trocado, pela mãe, por uma égua (!!) ainda criança. Após sua adolescência de fome e miséria, foi dar na Lapa, território boêmio do Rio de Janeiro, onde fez fama sem fortuna.

A morte lhe chegou aos 76 anos, de câncer, em abril de 1976.

“Morreu o samurai da Lapa”, registrou Jaguar (que virara seu amigo), arrematando:

- Depois da missa tomarei um porre na Capela em homenagem a um dos poucos homens de caráter que conheci.

Quem de nós, pobres humanos, haverá de merecer a sentença do jornalista/humorista?

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