- Mota, está lendo o quê?

Se o celular não trouxesse a identificação do meu questionador do momento, ainda assim eu saberia quem era – pela voz tonitruante e pelo tema.

A minha proximidade com o juiz Jerônimo Roberto dos Santos se deu a partir da prisão, decretada por ele, do ex-coronel Cavalcante (1998), apontado como o comandante da chamada “gangue fardada”, uma dolorosa passagem na história da Polícia Militar.

Na verdade, já nos conhecíamos de outros tantos carnavais. Jerônimo morava nas proximidades da velha Buarque de Macedo, onde cresci correndo pela rua de terra batida, o melhor campo de futebol que um moleque da minha geração podia desejar.

E o futebol era, para nós, o “mar de Pessoa”, que nos unia, embora algumas vezes até nos separasse. Sim, porque ele era da turma da Praça Rayol, que ficava do outro lado da velha ponte do Salgadinho - limite do mundo que era meu. 

Enfrentávamo-nos, de quando em vez, e nem sempre a peleja terminava na almejada paz dos homens. Isso não impedia que voltássemos aos gramados (um exagero a batizar o piso dos nossos campos) como se nada tivesse acontecido no passado recente. Os rancores? Eram, sim, sentidos quando de uma entrada mais dura, que não resultava, em regra, em nada grave. Haveria sempre a próxima vez para o ajuste de contas.

Bem depois, nos encontramos no Colégio Sagrada Família, no ano que antecedeu o nosso vestibular: ambos passamos em Medicina, cada um em uma faculdade. Coincidência: nenhum dos dois concluiu o curso, seguindo caminhos distintos do que havíamos sinalizado.

Após retomarmos o contato, quando da prisão do ex-militar, passamos a nos falar com frequência, pelo menos uma vez por semana. Quem conheceu o Jerônimo de perto sabe que ele mantinha traços de personalidade marcantes: duro e impiedoso no embate, mas revelando um humor temperado com alguma acidez e gargalhadas escancaradas, herança do moleque de Jaraguá.

Cunhava apelidos demolidores para os seus desafetos - e não economizava nessa criativa vingança -, assim como sempre achava uma palavra definidora da personalidade de alguém de quem gostava. Lembro que certa feita, o nosso personagem me indagou se eu tinha visto por aqueles dias o “Aponeurose”. 

Ante o meu silêncio de evidente ignorância, ele explicou que se referia ao meu cunhado, Leonardo Teixeira, que “é um advogado que quando pega um caso não larga mais, só com bisturi”. (Aponeurose é uma membrana fina que envolve os músculos e a eles se adere firmemente – o que havíamos aprendido nas aulas de anatomia.)

A nossa relação, entretanto, se intensificou na troca de sugestões de leitura. Sempre que eu indicava um livro, ato contínuo, Jerônimo providenciava a obra completa do autor, porque o exagero era parte da sua forma de estar no mundo. Sua preferência, assim percebi, eram as biografias em geral. O entusiasmo sobre um personagem o levava a me ligar às 23 horas de um dia e repetir o ato às seis e meia da manhã seguinte. Acostumei-me, com esforço é verdade, aos seus horários ansiosos e heterodoxos.

Incisivo, ele nunca deixou de ser. Recordo-me de um breve entrevero no sepultamento do também juiz Hélder Loureiro - a quem eu respeitava bastante. Encontrei com o Jerônimo na saída do velório e paramos para conversar um pouco. Um conhecido operador do direito se aproximou e nos cumprimentou. Ouviu, aos sustos, o vozeirão que lhe fazia a cobrança:

- Por que você não foi ao enterro da minha mãe?

Lívido e assustado, o inquirido balbuciou algo que me pareceu ininteligível, uma frase cortada pelo desfecho, ao estilo, do Jerônimo: “Seu nome está anotado no meu caderninho”. Uma bravata, eu diria, mas ele havia registrado ali o seu protesto.

A pandemia nos levou o Jerônimo e tantos outros próximos ou nem tanto, pessoas queridas de cujas ausências definitivas ainda não nos demos conta. É próprio das pandemias e das guerras, ambas trágicas e impiedosas, essas partidas sem despedidas.

Foram muitas, e algumas, por não serem personalidades públicas ou celebridades, não tiveram ao menos um registro de suas mortes em algum veículo de comunicação. Mas a saudade ficou encravada no peito dos que lhes guardavam afeto.

As limitações da cerimônia fúnebre, seguindo as orientações sanitárias dos tempos de pandemia, deixaram uma sensação de que algo deixou de acontecer – e que deveria ter acontecido. No caso específico, tento consertar, aqui, com uma frase que Jerônimo repetia nas suas despedidas  ao telefone:

- Qualquer coisa estou por aqui, viu, nego?

É isso.