"A poesia popular e puramente natural tem singelezas e graças pelas quais se compara à excelsa beleza da poesia perfeita quanto à arte" - Michel de Montaigne.
Pois bem: era uma daquelas deliciosas manhãs de domingo, que, para mim, começavam com Rolando Boldrin e o Som Brasil (hoje é Senhor Brasil, na TV Cultura). Já era assim, nos anos de 1980, e assim continua sendo - até quando, quem há de saber? O artista que se apresentava era um nordestino comum: cabelos desgrenhados, barba rala, violão nervoso e um invejável humor.
Foi na voz daquele personagem que eu ouvi pela primeira vez falar em Pinto do Monteiro. Um repentista e cantador ranzinza, assim definido por ele. Desfilou alguns versos do seu conterrâneo e me atiçou a curiosidade.
Anos depois, quase ao acaso, chegou-me às mãos uma biografia do Pinto Velho do Monteiro, escrita pelo advogado pernambucano Ivo Mascena Veras, um apaixonado pela arte e pelos artistas populares do Nordeste. Estava escrito ali: o cantador era tudo o que dele havia dito o compositor paraibano - e muito mais.
Ranheta, ninguém duvide, ele era de verdade. Fazia questão de sê-lo, aquele sertanejo nascido Severino Lourenço da Silva Pinto, em novembro de 1895, e que arrastou sua existência até outubro de1990, quando morreu na mesma Monteiro que o viu chegar ao mundo.
Um galo de briga - na viola -, o Pinto cantador. De tão iracundo, o danado, não admitia nem mesmo que o adversário se derramasse em elogios ao "gênio de Monteiro". Manoel de Xudu, do Sertão do Pajeú, foi um poeta atento à vida dos seus iguais. São dele os versos: Nessa vida de amargura/ O camponês se flagela/ Chega em casa à meia-noite/ Tira a tampa da panela/ Vê o poema da fome/ Escrito no fundo dela.
Eis que do alto do seu talento, Xudu abriu um desafio dizendo que para ele Pinto era um “deus”. Foi o suficiente para que o homenageado pegasse a viola, enfiasse no saco e se despedisse:
- E você só sabe cantar assim, é? Que coisa! Adeus.
Enfrentou todos os grandes de várias gerações: os irmãos Batista, Antônio Marinho (os "donos" de São José do Egito - PE, a maior concentração de poetas por metro quadrado do mundo), Pedro Marcolino e quem mais se apresentasse para a porfia. O improvisador imbatível era difícil de tombar. Já sem os dentes, deparou-se num embate com o grande Otacílio Batista, que lembrou esta condição. Pinto? Foi no cravo e na ferradura:
Eu ainda depois de morto
Três dias na sepultura
Meu espírito vai vagando
Somente à sua procura
A fim de um dia encontrá-lo
Cantando sem dentadura
Ao desafiador Expedito Sobrinho, que disse do então octogenário Pinto que ele não chegava aos "noventa", respondeu:
Eu vivo é cento e quarenta
Achando a vida moderna
Escorado na bengala
Coxeando duma perna
Quem me domina é Jesus
Corno nenhum me governa
É claro, ele tinha também um momento de aconchego e amizade no seu versejar de guerreiro. Na casa de José Monteiro, nas quebradas do Sertão, no meio da cantoria apresentou seu pedido:
Amigo José Monteiro
Avise à sua Senhora:
Se tiver galinha gorda
Mate e traga pra fora;
Que o filho comendo a mãe
Quem não viu, vai ver agora
Morreu cego e na miséria, dividindo com seu adversário e parceiro da vida toda, Lourival (Loro) Batista, uma pensão de um salário mínimo, concedida pelo governo do Estado de Pernambuco. Deixou uma das mais belas e verdadeiras definições de saudade:
Essa palavra saudade
Conheço desde criança
Saudade de amor ausente
Não é saudade, é lembrança
Saudade só é saudade
Quando morre a esperança