A cena se deu há quase vinte anos, mas ainda está bastante viva na minha memória. Poucas vezes eu senti essa mistura de sensações: entre o ridículo e o muito divertido, tudo numa sequência acelerada, na transição entre a emoção e a razão.

Mas vamos lá.

Era o final do ano de 2003, e eu fui ao cinema, com grande expectativa, ver As invasões bárbaras, filme canadense do ótimo diretor Denys Arcand,  que também assina O declínio do império americano e A era da Inocência – eles formam uma trilogia rara no cinema das Américas. Eis um artista que sabe ler o mundo.

Pois bem. Cheguei à sala de cinema, ali no Shopping Cidade – que não há mais –, em cima do início da sessão, 18 h. As luzes já estavam apagadas, e foi na adorável escuridão que eu busquei assento. Escolhi uma cadeira na última fila, o que sempre faço. Tão logo o filme começou, passei a gargalhar sem freios, o que repeti em sequência, até que o drama se impôs e a história tomou o seu rumo definitivo.

Eis a questão, meus caros e minhas caras: a sala estava parcialmente cheia, eu via as cabeças dos demais espectadores, mas não ouvia  uma só risada! Apenas a minha estrepitosa manifestação sonora ressoava na sala. Cada risada rompendo o negror do silêncio era única, sem eco, sem coro. Imaginem o tamanho do incômodo: senti desabar sobre mim o peso da vergonha, e não conseguiria provar, pelo menos ali, que eu não era somente um ruidoso idiota, como todos haveriam de achar - um maluco beleza de final de tarde.

Quando a sessão terminou, ainda emocionado, me dei conta de que não saíra, como deveria tê-lo feito, antes de as luzes se acenderem. Pude ver, então, que eu era o único “senhor” do cinema: a plateia era formada por uma turma bastante jovem, atraída, provavelmente, pelo título que, para ela, sugeria algo bastante diverso do que eles viram. Ufa! A conta estava zerada: ninguém devia nada a ninguém.

Recordei essa história na semana que passou, quando eu revi pela quinta ou sexta vez As invasões bárbaras. E como foi bom! O filme não envelheceu, é um clássico, como eu já havia pressentido tão logo terminou aquela “trágica” sessão de 2003.  Vê-lo, de novo, me fez sentir uma plenitude que só a arte proporciona – acalma a alma e promove a interação mais absoluta com o corpo. Relaxado, dormi como um deus, sem culpas e sem pecados.

Aos que estranham o fato de se deparar com alguém - mesmo que um sessentão - que divulga o prazer de rever um filme tantas vezes, eu vos digo: foram muitas as novidades que encontrei agora na arte sutil e instigante de Denys Arcand. Por exemplo: a citação do personagem Rémy (interpretado por Rémy Girard), protagonista da história, sobre Primo Levi, o químico judeu italiano, que escreveu É isto um homem? (livro que vira quase um personagem do filme), contando a sua trágica existência em Auschwitz, na 2ª (e não última) Grande Guerra.

Mais: o provocativo debate entre os amigos de um grupo de intelectuais em tudo distinto, vindo junto lá da década de 1960, cortando a história no meio, como um punhal afiado. A inteligência, diz um dos personagens, não é um bem individual - é algo coletivo, quase geracional. E cita Da Vinci, Michelangelo, Rafael, Maquiavel, que coexistiram no mesmo tempo e espaço. Eis que a inteligência some e demora a voltar. Mas volta, e ainda bem, eis a conclusão.

E não é que é? Nas Alagoas, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda - a geração de 1930. Na MPB: Chico, Caetano, Gil, Paulinho da Viola e tantos outros discípulos de Tom e Vinicius. Há mais, muito mais, se quisermos cutucar a lembrança.

Pano rápido.

O enredo de As invasões bárbaras poderia, sim, ser descrito como uma história sobre o direito a uma morte digna, que eu tenho como inalienável. Só que é mais do que isso: trata-se de uma bela defesa da vida, aquela que vale a pena, e que faz da amizade a maior de todas as conquistas – contando aqui também as nossas crias e criadores.

Numa comédia dramática, seguindo a lição que Chaplin deixou aos cineastas que o sucederam, vemos uma existência que pode ser a de qualquer um de nós, com suas particularidades, medos, a constatação dos próprios fracassos, a dificuldade de se chegar sereno ao último instante. Mas que é também a confirmação definitiva do que disse Dostoiévski: para quem carrega uma boa lembrança, ao menos, a vida sempre valerá a pena.

Evitando os spoilers, arremato com a última discussão do ateu Rémy com Deus: que sentido teria a vida? 

Eu já desisti, há muito, de me fazer essa pergunta, mas acho que a recente noite em que revi As invasões bárbaras já dá algum sentido ao que parece, às vezes,  inútil.