Você já deve estar saturado de tanto ouvir falar do tapa que o ator Will Smith deu no comediante (?) Chris Rock, na cerimônia do Oscar. Confesso que eu também, e não é pouco.
Mas peço um tantinho de paciência, pois lembro o fato apenas para introduzir o tema desta crônica. Digo-lhes que aquele foi o tapa que virou notícia, mas há outros que viraram história, pelo tamanho dos personagens envolvidos.
Todos nós, simples mortais, já passamos do ponto, em reações de fúria só imaginadas e admitidas para uma gente mais tosca, incivilizada, sem controle emocional, até que nos deparamos com aquilo que nos parece o limite da nossa racionalidade (sem chegar ao extremo, esclareço).
Chega celeremente a vergonha, é verdade, mas ela não faz o tempo voltar atrás. Fazer o que com que está feito? A resposta talvez fosse possível, e até mais elaborada, aos personagens abaixo, artistas e intelectuais, que ultrapassaram a linha divisória entre civilização e barbárie – como qualquer um de nós -, ainda que eles não nos tenham deixado registradas explicações dignas de suas obras.
Comecemos com uma dupla em tudo superior, na criação e na tradução da condição humana, à média dos homens: refiro-me aqui a Sérgio Buarque de Holanda e Carlos Drummond de Andrade, que aí pela década de 1940, em plena ditadura Vargas, trabalhavam no moderno prédio do MEC, onde protegiam os novatos perseguidos pela censura política e policial, com o aval do ministro Santiago Dantas.
Mas não fizeram apenas isso: por conta de um afeto comum (coisas do corpo e da alma) se estapearam até que fossem separados pelos colegas, ao vê-los, óculos quebrados no chão, cegos de paixão e ódio – sentimentos que tantas vezes se confundem.
Quando não foi por causa de uma mulher, o violão, de formas tão semelhantes à anatomia feminina, protagonizou um inesquecível arranca-rabo entre o doce Tito Madi e o iracundo João Gilberto, cioso, este, do silêncio, mas que se revelou um oponente do barulho. Foi numa premiação na antiga TV Record, ainda pela década de 1960. Ambos seriam agraciados com o troféu Chico Viola, em show da melhor MPB daquela quadra da vida brasileira.
João resolveu batucar, suavemente, atrás do palco, ao lado de duas cantoras de grande sucesso, então. Tito Madi, incomodado com a zoada, puxou um coro de “psius”. Em troca, o pai da bossa nova enfiou-lhe o violão na cabeça, mandando o cantor de voz suave e agradável para o hospital.
Coisa de gênio? De genioso, seria mais apropriado.
Muitas vezes ser manso, ou pouco afeito a atos de violência, não garante comportamento civilizado ou serenidade na hora em que o calo aperta. Principalmente quando nos colocamos na defesa de alguém a quem admiramos ou até amamos – e aí a porca torce o rabo.
O jornalista Paulo Francis, que se definia como “polemista profissional”, teve seu dia de sparring de dois grandíssimos espécimes da arte da representação. E, de novo, por causa da mulher! A sua compulsão por arranjar encrencas, inclusive as desnecessárias, empurrou-o para uma crítica severa à bela e talentosa Tônia Carreiro. Os advogados da atriz, Adolfo Celi, marido, e Paulo Autran, companheiro de palco e de bares, logo se transformaram em ferozes promotores e juízes. Estabeleceram socos e cusparadas como a pena a ser cumprida pelo jornalista/personagem. Há de se dizer em favor de Francis, que, tempos depois, ele se confessou arrependido da diatribe mal destinada.
Mas vamos à mais literária história de um nocaute inesperado. Deu-se entre dois enormes escritores latino-americanos – é melhor usar “gigantes”, o que faz mais justiça a Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez. Um soco vulgar, um olho roxo – o de Gabo, sorridente –, e os jornais, especializados ou não, se fartaram noticiando o embate físico entre os dois ganhadores do Nobel (e são bons demais, ambos!).
Por ciúme ou por despeito, Llosa e Gabo chegaram ao encontro entre escritores no México, naquele 12 de fevereiro de 1976, na iminência de rompimento e desfazimento de uma longa amizade, cheia de admiração recíproca e de intimidade entre as famílias de ambos. Patricia, mulher do ativo peruano, tornou-se o cerne do briga.
As versões são muitas, e não foram cotejadas até hoje, oito anos após a morte do autor do magistral Cem anos de solidão – Crônica de uma morte anunciado e Amor nos tempos do cólera são os meus preferidos. Gabo se foi em silêncio (2014), e em silêncio se mantém o criador de Conversa na catedral – Tia Julia e o escrevinhador e A guerra do fim do mundo são parte essencial da melhor literatura produzida por essas bandas do planeta, em minha opinião.
A ela, Patricia, Márquez teria revelado as aventuras do amigo, um femeeiro (saudades de Sandoval Caju) de tantos amores fugazes. Narram outros que o colombiano teria ido além. A dúvida estaria até mesmo nas palavras que teriam sido ditas pelo escritor peruano após desfechar o surpreendente – e não correspondido – golpe no antagonista: “Isso é pelo que você disse a Patricia” ou “isso é pelo que você fez a Patricia”.
Não importa muito o motivo. Perderam ambos, imagino, pelo que fizeram e disseram - e não deveriam.
Quanto ao ator Will Smith, admito que não recordo nenhum filme específico estrelado por ele – o que não tem a menor importância para os leitores e as leitoras. Talvez lembre, mais adiante, que ele recebeu um Oscar da tal Academia que não viu Ataque dos cães como um filmaço. Este foi o tapa, mais um, da mesma turma naqueles que acreditam que cinema é arte.

Ricardo Mota