Na semana passada, deparei-me com um artigo de uma colega jornalista em que ela lamentava a ausência de Millôr Fernandes por esses tempos de tão pouca graça.
Sim, porque há uma confusão imensa entre humor - aquilo que pode nos fazer rir e até pensar - e as grosserias ofensivas despejadas em todos os meios de comunicação, ainda que arranquem risadas de gente sem nenhuma alegria.
A verdade é que a palavra gênio sempre acompanha qualquer menção a Millôr, que morreu em março de 2012, e, como sói acontecer com criadores desta estirpe, sem deixar herdeiro à altura no seu fazer.
O breve artigo da jovem coleguinha provocou minha curiosidade retroativa, e me fiz a pergunta fatal: - O que diria o nosso personagem, Milton Viola Fernandes batizado, sobre o Brasil de agora (que dói, mas passa, gente)?
Danei-me a reler a Bíblia do caos, mais de 500 páginas com o melhor do humor do Millôr, e talvez tenha encontrado algo que venha a calhar, que possa vir a ser uma resposta factível e ao estilo para a pergunta óbvia - e irrespondível.
Mas antes de arriscar um palpite, me parece necessário contar um pouco desse intelectual brasileiro, autodidata, de muitos amigos, e inimigos em número ainda maior - no poder e até nas artes. Exemplo: Chico Buarque saiu no tapa com ele, magoado com a seguinte declaração do iconoclasta: “Eu não confiaria o meu cachorro para passear com ele na praia”. Diria depois, o Millôr: “Arte é intriga” - e praticou ambas sem parcimônia.
Bem pior o jornalista viria a fazer com Sarney e a sua tentativa de entrar para o seleto grupo dos grandes literatos do Brasil. O ex-presidente lançou o romance Brejal do Guajás, com pompa e circunstância, mas se deparou com a mais demolidora crítica que um escritor já pôde enfrentar:
“É um desses livros que quando você larga não consegue mais pegar.”
“Dizem os íntimos que, depois de 20 anos de esforço, Sir Ney conseguiu chegar à página 50, e gritou para dona Kyola: - Mãiê, acabei.”
Millôr gostava de ser tratado como gênio e não o escondia: “Ser gênio não é difícil. Difícil é encontrar quem reconheça isso”. Autoelogio explícito à trajetória do garoto órfão de pai e mãe que chegou ao finado O Cruzeiro aos 15 anos, para ser contínuo - e tornou-se o jornalista mais bem pago da sua geração apenas seis anos depois (Cobras criadas e Cadernos de Literatura Brasileira). Então monoglota, aos 19 anos encarnou um brilhante tradutor de obras literárias em inglês - que aprendeu nos dicionários –, o que inclui Shakespeare.
Peças, livros, contribuições várias à imprensa brasileira, e, suprassumo do sucesso, tornou-se até o autor desconhecido de ditos populares: “A ociosidade é a mãe de todos os vices.”
Mas que ele próprio nos mostre um pouco daquilo que o fez tão admirado e odiado (estou entre os do primeiro grupo):
“Minha maior decepção comigo mesmo foi no dia em que descobri que também estava sujeito à condição humana.”
“Passa pelo psicanalista e pergunta: - Olá, como vou?”
“Todo mundo leva pau no exame de consciência.”
“O Brasil é realmente muito luxuoso. O serviço é que é péssimo”.
“A história não é mais do que um viaduto do incompreensível para o insabido.”
“O delator ganha o pão com o suor do seu dedo.”
“Desconfio sempre de todo idealista que lucra com seu ideal.”
“A nobreza de uma ideia não tem nada a ver com o canalha que a exprime.”
“Quando uma ideologia fica bem velhinha vem morar no Brasil.”
“E disse o porta-voz: - Podem crer. Ei vi com estes olhos, que a imprensa há de comer.”
“Deem-me uma multidão e um microfone e eu lhes dou um bom fascista.”
“A democracia relativa é muito parecida com a ditadura absoluta.”
"Justiça – loteria togada."
" Inflação – onde comem dois come um."
“O dinheiro compra o cão, o canil e o abanar do rabo.”
“O pai lhe deixou tudo o que tinha: a barriga, a careca e a estupidez” (esta foi para mim?).
“Nada é mais grave e perigoso do que emoção juvenil em adulto” (previu as redes sociais?).
“Só existe uma maneira segura de remoçar: é andar sempre com pessoas 20 anos mais velhas que você.”
“Você está realmente velho quando pensa em largar tudo e percebe que tudo te largou”.
“A morte é compulsória. A vida não.”
“Todo dia leio os avisos fúnebres do jornal: às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas.”
“Meu epitáfio: não contem mais comigo.”
Estou devendo a resposta àquela pergunta lá de cima, certo?
Ei-la: “No planalto, muita gente de quatro fingindo que está apenas procurando a lente de contato.”
Se vivo fosse, ele poderia até fazer melhor, mas nem precisava.

Ricardo Mota