Aos homens e mulheres que moram dentro de si

23/01/2022 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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Andei meio borocoxô, por esses dias, mesmo que para o lado de fora eu me mantivesse mais ou menos igual (será este o meu natural?). Nada de mais: minha filhota Camila, lá em São Paulo, o marido dela, Luiz Felipe, e os meus dois proprietários, João Vicente e Joaquim, contraíram a ômicron, a variante de coronavírus de comportamento invariável e irrefreável.

Mas está tudo bem, e eu já ando mais solar. Goethe, muito apropriadamente, dizia que raciocinamos por comparação, o que faz com que os dias de sol sejam bons porque existem os dias de chuva.  Sem estes, sei lá!

Nesses períodos em que algo me incomoda mais, por inevitável, costumo me recolher, ainda que isso não seja notado por muita gente. Como já disse, aqui mesmo, circulo cada vez menos – a pandemia surgiu como uma ótima desculpa para as minhas ausências – e converso quase sempre com os mesmos, queridos, queridas e inseparáveis afetos.

Não imaginem, porém, que sou feito de silêncios. Acho até que minha loquacidade, em dados momentos, pode se tornar insuportável. Mas depois de abusar do verbo, volto para a minha rotina, menos ruidosa do que o contrário, seguindo o jeito que encontrei – depois de longa e trabalhosa procura – de viver o que já considero a minha felicidade (serenidade seria mais apropriado).

É pouco? Perdoem-me discordar, mas já entendi que o possível pode ser bem especial (já repararam que consideramos “felizes”, pra valer, aqueles de quem pouco ou nada conhecemos?).

Ter um cantinho só seu, e aqui não trato apenas de espaços físicos, é um mimo que a vida nos dá – e não dá a muitos, lamento. Encontrá-lo pode ser resultado de uma longa e árdua busca, mas que pode valer a pena, e tanto, pelo recanto.

Vejam que historinha legal sobre um personagem grande, mesmo que mirrado e imprensado entre as paredes de um mundo que lhe poderia ter sido mais grato e bem mais largo.

O poetinha gaúcho Mário Quintana, que a Academia Brasileira de Letras não quis receber entre os seus – acho que Machado de Assis coraria de vergonha -, só não teve um final de vida mais parco graças ao ex-jogador Falcão. O craque da inesquecível seleção de 1982 (do Telê) cedeu ao poeta um dos quartos do Hotel Royal, que lhe pertencia.

Era o outono da vida de Quintana, que aprendi a admirar tão logo conheci – já depois dos 30, confesso -, e que foi apaixonado por Cecília Meireles, declaradamente; e por Bruna Lombardi, tardiamente. Sempre que alguém lhe dizia que achava minúscula a sua nova morada, ele respondia, sem autocompaixão, com a voz prenhe de sábia contemplação: "Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno”.

O criador do Poeminha do contra, foi sempre a impressão que eu tive e guardo sobre ele, é desses poetas que apanham seus versos no chão da rua, nas calçadas, na grama do jardim, como se nos dissessem que eles sempre estiveram ali, presos nas pedras, na terra. Se não vimos foi porque não aprendemos a morar dentro de nós mesmos, quando é preciso.

Os versos de Quintana me parecem de uma simplicidade debochada, que ele justificou com ironia e, sim, com alguma provocação:

- Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

Ao fim e ao cabo, a arte, simples e cristalina, vai sobreviver aos tempos, mesmo esses tempos em que a luz  se nega aos nossos olhos. É seguirmos, até nos dias de chuva, como nos legou o outro da mesma espécie de sedutores: “Faz escuro, mas eu canto”.

(Meu “até sempre” a Thiago de Mello. E não é que os poetas arranjaram um jeito de nunca dizer adeus?)
 

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