Covid-19: “O medo aumenta depois que a gente perde um amigo de trabalho”, relatam profissionais da linha de frente

18/04/2021 08:00 - Especiais
Por Gabriela Flores e Vanessa Alencar
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Com uma média de 24 mortes por Covid-19 registradas diariamente em Alagoas, a dor da perda e o medo rondam não só os lares, mas também os locais de trabalho, onde manter o equilíbrio emocional tem sido um desafio diário. O CadaMinuto ouviu relatos de profissionais da Segurança Pública que perderam amigos próximos de profissão e que só agora, mesmo atuando na linha de frente do combate à pandemia, foram priorizados na vacinação. A reportagem traz ainda o alerta de uma especialista: “Nenhum ser humano consegue ficar exposto a ameaças reais, durante um período muito prolongado sem sentir”.

A psicóloga Alynne Acioli comentou que a nossa capacidade de regulação emocional e de manter o foco no positivo, tem certa limitação. Segundo ela, a demanda energética que vem de situações de estresse prolongado, de ameaça prolongada, causa mudanças cerebrais e hormonais que provocam alterações em todo nosso corpo e na nossa saúde tanto física, como psicológica e emocional.

Ela sugere que a instituição ou empresa que está com os seus funcionários, seus colaboradores atuando, seja de forma presencial ou remotamente, precisa estar atenta a essa demanda prolongada. “Depois de um ano de pandemia, com o aumento significativo das mortes e com a perda de amigos queridos, de familiares, de colegas de trabalho, fica difícil manter o nível de esperança, de positividade, como no começo da pandemia, por exemplo, em que havia o medo pelo desconhecido, mas ainda existia uma esperança muito grande de que as coisas iriam se resolver com certa brevidade”.

A sugestão para fazer com que os trabalhadores consigam manter o foco e a positividade, mesmo diante de um cenário duro, segundo a psicóloga, poderia ser um momento de diálogo, com espaços de escuta e, se possível, encaminhamento para psicoterapia ou oferecimento de práticas que possibilitam o controle e a regulação da ansiedade. Meditação, exercícios respiratórios e ginásticas laborais são atividades recomendadas, já que trabalham a nossa capacidade respiratória, o que ajuda tanto no ponto de vista emocional como físico.

“Essas práticas adotadas pelas empresas podem sim favorecer e minimizar os impactos da pandemia e das perdas dentro do ambiente profissional”, reforçou Alynne.

Impactos na produtividade 

A profissional explica que a perda de um colega de trabalho provoca diversos impactos, principalmente neste momento de pandemia, quando o contato físico é visto com temor. “Em um primeiro olhar, a gente já percebe que é muito provável que a produtividade caia. Nossos ambientes de trabalho tendiam a ser leves, de contatos próximos e isso tudo sofreu uma alteração. A partir do momento em que estou amedrontado, ansioso ou com alguns sintomas de depressão, eu não consigo ter a minha capacidade produtiva mantida”.

Ela destaca que, sempre que falamos em ambiente de trabalho, é preciso lembrar que as empresas têm um propósito, nenhuma organização existe sem uma proposta, um objetivo,  um resultado  - seja financeiro ou social - a fornecer à sociedade, então a partir do momento em que as pessoas que são responsáveis por promover esse resultado não estão bem, seguramente isso vai impactar no próprio desempenho no ambiente de trabalho

O enfrentamento a esse medo que está presente na vida pessoal e profissional passa, segundo a psicóloga, pela conscientização. Dentro do ambiente de trabalho “precisamos manter os cuidados que estamos tendo em outros ambientes sociais e, talvez, de uma maneira até mais rígida. Os locais devem estar adaptados à nova realidade, com o fornecimento de EPIs e álcool líquido, e capacitação para os colaboradores fazerem uso adequado dessa proteção, pios a melhor forma de administrar o medo da contaminação é a partir do conhecimento”.

A psicóloga desta que precisam os estar atentos aos “sinais” que o corpo dá.  Quando conhecemos nosso funcionamento emocional, psicológico e orgânico podemos perceber com mais facilidade quando algo está “fora do habitual”. Alteração do sono, mudança na alimentação, sintomas físicos, como dores de cabeças mais constantes, palpitações no peito, sudorese excessiva, tremores nos olhos, irritabilidade, são sinais de estresse, de tensão acumulada, alertas que devemos observar quanto à intensidade e a durabilidade.

“Diante de uma situação pontual, alguém ter uma dor de cabeça, uma tensão muscular ou dificuldade pra dormir são reações naturais, no entanto, quando esses sintomas, esses sinais têm uma duração mais prolongada ou uma intensidade que prejudica a realização das atividades, aí sim, para que não se tornem algo mais grave e seja necessário um afastamento por esgotamento, é preciso buscar ajuda especializada”, finalizou a psicóloga.

Sem previsão e sem máscaras 

Desde o início da pandemia, há pouco mais de um ano, o policial militar Fábio* perdeu dois amigos próximos e alguns colegas. Ele conta que, depois das perdas, o ambiente de trabalho ficou mais tenso, embora o grupo sempre tenha tido ciência do imenso risco corrido pela categoria, devido ao contato diário e direto, durante as ocorrências, com muitas pessoas, entre infratores, vítimas e testemunhas

“Não tem como ter diferenciação e nem a segurança de que essas pessoas não estejam contaminadas. O medo é uma constância e ele aumenta depois que a gente perde um amigo, um colega de trabalho que atuava exatamente na mesma função nossa... O pior para mim é o risco de trazer a doença para minha família, de ser o vetor de contaminação para eles”, prosseguiu o PM.

Lembrando que o índice de contágio entre policiais em relação à população em geral é bem mais elevado, Fábio desabafou: “Somos atividade essencial, porém, infelizmente não estamos sendo tratados assim. Não há previsão, ainda, de vacinar os profissionais da segurança pública com menos de 45 anos e essa é justamente a faixa dos profissionais que estão mais expostos, nas ruas”.

Ele relatou ao CadaMinuto uma ocorrência recente, na qual uma mulher estava tentando matar o marido com uma faca, na frente dos dois filhos, de três e quatro anos. “As crianças estavam apavoradas e tivemos que tirá-las do local. Eram crianças pequenas, queriam colo, não tem como você negar isso numa situação dessas. Peguei as crianças, que não usavam máscaras, nos braços, tive que acalmá-las e não é possível saber se estavam contaminadas”.

O policial contou que são frequentes as ocorrências onde os envolvidos estão sem máscaras de proteção. “A polícia não tem esse aparato de máscaras para distribuir toda vez que for atender uma ocorrência, o que já é mais uma preocupação para o policial... É uma situação muito complicada. Quando volto para casa, no final de cada serviço fico pensando que estou com o vírus no corpo e que tenho que tirá-lo para poder ficar com a minha família”, finalizou.

Vacina depois das perdas 

A bombeira militar Márcia* perdeu cinco colegas de farda para a Covid-19, sendo dois deles seus amigos, que trabalhavam realizando o mesmo serviço de resgate que ela. “Uma delas estava grávida, conseguiu ter a filhinha, mas faleceu. O outro tinha apenas 40 anos e nenhuma comorbidade... O impacto dessas perdas recentes no trabalho da gente foi o aumento do receio de sermos contaminados durante as ocorrências e fez com que corrêssemos mais em busca de prioridade na vacinação”, relatou.

Segundo ela, desde o início da pandemia os cuidados com a proteção individual, que já eram grandes, redobraram. “Só que essa segunda onda veio forte, o que fez com que a categoria se mobilizasse no sentido de agilizar a vacinação, pleiteando isso junto ao comando, junto ao governador, à Secretaria de Saúde e eles acabaram ouvindo nosso apelo, entendendo que nós somos linha de frente. Conseguimos fazer as autoridades enxergarem que, principalmente na área do resgate, estamos diretamente em contato com as vítimas, levando para hospitais, UPAs”, lembrou.

Márcia conta que sempre tomou cuidados, na vida profissional e privada, até pelo fato de ter uma doença crônica, mas as perdas de pessoas próximas, aliadas aos casos cada vez mais comuns de gente jovem e saudável adoecendo, aumentaram seu receio: “Já tomei a primeira dose da vacina, mas ainda não me sinto segura, nem acho que vou me sentir. Mesmo depois tomar a segunda dose, vou continuar tendo todos os cuidados... O vírus já sofreu algumas mutações e a gente simplesmente não sabe o que vai ser daqui para frente. A vacina dá um certo alívio, mas não traz aquela segurança que, há um ano, a gente achou que teria quando finalmente a vacina chegasse”.

 

*Os nomes verdadeiros do policial e da bombeira foram preservados a pedido dos entrevistados. 

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