Política Externa dos Estados Unidos no governo Biden: é possível um retorno ao passado?

07/12/2020 19:20 - Blog do Eduardo Bomfim
Por Luís Antônio Paulino
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O mesmo erro que Trump cometeu ao prometer aos norte-americanos uma volta ao passado, fazendo retornar aos Estados Unidos empresas e empregos que foram exterminados pela globalização e pela chamada 4ª Revolução Industrial, Biden pode cometer se quiser que os Estados Unidos voltem a ocupar no mundo a mesma posição que ocupavam até o final do século passado.

O mundo unipolar com os Estados Unidos como única potência hegemônica foi um subproduto passageiro do fim da Guerra Fria que definitivamente ficou no passado. A política isolacionista de Trump certamente contribui para acelerar a perda de relevância mundial dos Estados Unidos, mas não foi a causa principal. Muito antes de Trump assumir a presidência, em 2016, a posição dos Estados Unidos no mundo já era contestada, dentro e fora do país. Dentro pelos efeitos desiguais da globalização e o custo das intervenções externas e fora pela contestação das potências emergentes à dominância americana no período pós-guerra.

A ascensão da China à condição de grande potência, o retorno da Rússia ao cenário geopolítico global e o crescente distanciamento entre Europa e Estados Unidos são fenômenos que remontam pelo menos ao início deste século.

Biden já anunciou mudanças importantes na política externa americana como o retorno dos Estados Unidos ao Tratado de Paris sobre mudanças climáticas e à Organização Mundial da Saúde (OMS). É possível também que os Estados Unidos abandonem a política exclusivista com relação às vacinas da Covid-19 e adira ao consórcio Covax liderado pela OMS cujo objetivo é tornar as vacinas acessíveis a todos os países, inclusive os mais pobres. O retorno dos Estados Unidos ao Acordo Nuclear com o Irã, costurado no governo Obama, também é uma possibilidade. Não se descarta que Biden volte a indicar os juízes americanos para o órgão de apelação da Organização Mundial de Comércio (OMC), permitindo assim que o órgão volte a funcionar. Tudo isso são boas notícias. Afinal, o mundo, cada vez mais globalizado, enfrenta desafios comuns, como as mudanças climáticas, as pandemias, os fluxos migratórios, a fome mundial, a proliferação de armas nucleares, o protecionismo no comércio global, entre outros, que não têm como ser resolvidos sem a mais ampla cooperação internacional.

O retorno dos Estados Unidos a essas iniciativas e até mesmo sua liderança são notícias alvissareiras. Entretanto, outras iniciativas   consideradas têm um potencial tão desestabilizador quanto as próprias políticas do governo Trump, uma vez que estão em desacordo com a ordem mundial multipolar emergente. Uma delas é a ideia de construir uma ampla  coalizão de países “democráticos” para enfrentar a “ameaça chinesa”.

Em artigo publicado no número de março/abril de 2020 da revista americana Foreign Affairs, intitulado “Porque a América deve liderar de novo”, Biden afirmou que os Estados Unidos precisam ser duros com a China, pois se deixada à vontade ela continuará roubando a tecnologia e a propriedade intelectual dos Estados Unidos e das empresas americanas, continuará a oferecer subsídios para dar vantagens injustas para suas empresas estatais para dominar as tecnologias e indústrias do futuro.

Segundo o agora presidente eleito dos Estados Unidos, a forma mais efetiva para enfrentar esse desafio é construir uma frente unida dos aliados dos Estados Unidos para confrontar os comportamentos abusivos da China e as violações dos diretos humanos, mesmo que os Estados Unidos procurem cooperar com Pequim em questões nos quais seus interesses convirjam, como as mudanças climáticas, a não proliferação de armas nucleares e a segurança sanitária global.

Segundo Biden, os Estados Unidos representam sozinhos um quarto do PIB global e, somado às democracias aliadas, pode dobrar essa força e isso dar-lhes-ia alavancagem para definir as regras do jogo em tudo, do meio-ambiente, ao trabalho, comércio, tecnologia e transparência, de forma que elas reflitam os interesses e valores democráticos. Desse modo, segundo ele, a China não poderá ignorar mais da metade da economia mundial,

A leitura que o partido Democrata faz sobre a questão chinesa, portanto, é que o erro de Trump não foi ter identificado a China como um “competidor estratégico”, mas o fato de querer enfrentá-la sozinho, ao mesmo tempo em que atacava seus aliados tradicionais, nomeadamente a União Europeia, o Japão e a Coréia do Sul. De acordo com essa leitura, o governo Biden deveria construir uma ampla coalizão internacional em torno dos Estados Unidos para forçar a China a mudar sua política interna e externa.

Caso Biden caminhe nessa direção, dificilmente terá sucesso. Primeiro porque nem todos os governantes que antagonizam a China são necessariamente democráticos e nem todos que são democráticos antagonizam a China. Segundo porque o que move a todos, com exceção de alguns fósseis da guerra fria, são interesses puramente econômicos.  Nesse caso, essa coalizão anti-China seria apenas um simulacro para disfarçar o desejo americano de manter-se indefinidamente como potência hegemônica global. Isso não pode dar certo.

Os Europeus têm lá suas desconfianças em relação à China, mas tampouco desejam que a Europa retorne à condição de protetorado americano que marcou a relação transatlântica no pós-guerra. A Alemanha tem seus próprios interesses e vê a China como importante parceiro comercial. O mesmo ocorre com outros países europeus que aderiram à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI na sigla em inglês), como Itália, Grécia, Espanha e Portugal.

O ultimatum dado pelos Estados Unidos a Portugal, por conta do projeto de renovação do porto de Sines, em parceria com os chineses, dentro do portfólio de projetos da Iniciativa Cinturão e Rota irritou o governo português e é um bom exemplo de como as coisas poderão não andar como pretendem os Estados Unidos.

Na escolha do parceiro de Portugal no estratégico porto de Sines, os Estados Unidos foram preteridos pela China, forte sinal das dificuldades norte-americanas mesmo diante de tradicionais aliados europeus.

O porto de Sines, localizado a 100 quilômetros ao sul de Lisboa sempre foi cobiçado pelas potências estrangeiras por sua importância geoestratégica. Romanos, Visigodos e Mouros estabeleceram povoamentos ao longo de seu porto de águas profundas. Foi dali que Vasco da Gama partiu para construir  o império marítimo de Portugal, no século 15, criando as colônias portuguesas em Goa, na Índia, e em Formosa e Macau, na China, tendo devolvido esta última aos chineses apenas em 1999.

Sines é o porto da Europa continental mais próximo das bacias de xisto dos Estados Unidos na costa leste e está na mesma direção do Canal do Panamá. As empresas americanas querem expandir o terminal de gás natural líquido do porto para aumentar suas exportações de gás para o continente, o que reduziria a dependência da Europa em relação à Rússia. O embaixador dos Estados Unidos em Portugal, George Glass, afirmou que o investimento proposto pelos Estados Unidos iria converter Sines na “Singapura do Ocidente”. Mas os portugueses optaram pela parceria com a China. Os chineses vão ali construir um megaporto de contêineres. Trata-se de um projeto de €640 milhões que terá um papel chave na Iniciativa Cinturão e Rota, da qual Portugal faz parte desde 2018.

O embaixador americano “alertou” as autoridades portuguesas que o porto chinês de contêineres iria afetar a “visão” dos Estados Unidos sobre o desenvolvimento do porto e que os portugueses precisariam escolher entre seu “aliado” histórico, os Estados Unidos, e os parceiros econômicos chineses. Os comentários pesados do embaixador americano não foram bem recebidos pelo governo e pela imprensa portuguesa.  O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa respondeu que era “uma óbvia questão de princípio que em Portugal, aqueles que decidem o seu destino são os representantes eleitos pelos portugueses e só eles.” O episódio português é apenas um exemplo dos muitos conflitos que poderão surgir caso o futuro governo Biden insista na política de dividir o mundo entre amigos e inimigos dos Estados Unidos e da China.

A assinatura, neste mês de novembro, do mega acordo comercial da Ásia, o   Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), envolvendo a China e outros 14 países asiáticos, entre eles os países da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) mais Japão, Coréia do Sul, Nova Zelândia e Austrália, foi outro duro golpe nas pretensões norte-americanas de isolar a China no leste e sudeste da Ásia.

Esse bloco de 15 países, articulados pela China, cobre 30% da população mundial, 29,3% do PIB global e 27,4% do comércio mundial. Responde por 70% do comércio mundial de circuitos integrados.  A Índia foi o único grande país da região a ficar fora do bloco, por receio de ter sua indústria local afetada negativamente.

Em um momento em que se fala em desacoplamento dos Estados Unidos da China e de reorganização das cadeias globais de suprimento, a formação desse bloco pode afetar seriamente os interesses dos Estados Unidos na região. As cadeias globais de suprimento tendem a se estabelecer em áreas de livre comércio. Quanto maior a integração comercial entre os países da Ásia, mais as cadeias globais de suprimentos centradas na China, Japão e Coreia do Sul tenderão a se regionalizar, em prejuízo de fornecedores de fora da área, cujas exportações podem estar sujeitas a tarifas de importação mais elevadas.

No caso específico do RCEP, serão eliminadas nos próximos anos tarifas sobre 91% das mercadorias comercializadas entre os membros.  No caso do Japão, por exemplo, o número de produtos não tarifados enviados para a Coreia do Sul aumentará de 19% para 92% e para a China de 8% para 86%. A indústria automobilista japonesa deverá ter grandes ganhos uma vez que o acordo eliminará as tarifas sobre quase US$ 50 bilhões em peças automotivas enviadas para a China.

O problema é que os Estados Unidos estão acostumados há décadas a definir o espaço que a China poderia ocupar no mundo. Isso vem desde a IIª Guerra, quando o General MacArthur tentou negociar um acordo entre Mao Tsé-Tung e Chiang Kai-shek para encerrar a guerra civil que levou os comunistas ao poder e passou pela Guerra da Coréia, pela questão de Taiwan, das ilhas Diaoyu (Senkaku para os japoneses) até a admissão da China na OMC.  A questão é que a China se emancipou e não precisa mais pedir licença para os Estados Unidos para projetar globalmente seus interesses.

Os Estados Unidos estão frente a um dilema: o que fazer com a China? Sua primeira reação tem sido contê-la, tal como fizeram com a antiga URSS, mas isso não é possível. Diferentemente da antiga URSS, a China está ligada por mil laços à economia americana e mundial. A disputa dos Estados Unidos com a China não é ideológica, mas essencialmente econômica.

A política dos Estados Unidos, de contenção da antiga União Soviética não tem produzido os mesmos resultados diante da ascensão econômica, comercial, financeira e tecnológica da China.

A única solução possível para não precipitar o mundo em um novo conflito global é aceitar a presença da China como um novo polo de poder global, tal como a Rússia, o Japão e a União Europeia e estabelecer uma política de cooperação competitiva, como propôs Fu Ying, ex-embaixador e vice-ministro das relações exteriores da China, em artigo recente no jornal New York Times (24/11/2020). Segundo o ex-diplomata chinês, “Ambos os governos têm agendas domésticas pesadas para atender, e mesmo se a competição entre a China e os Estados Unidos for inevitável, precisa ser bem administrada, cooperativamente. É possível que os dois países desenvolvam uma relação de “coopetição” (cooperação + competição) abordando as preocupações uns dos outros”.

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