O dilema das eleições dos EUA

06/10/2020 15:03 - Blog do Eduardo Bomfim
Por redação
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Por Lorenzo Carrasco, publicado na revista Resenha Estratégica

 

As próximas eleições nos Estados Unidos não têm paralelo na história daquela nação e, devido à sua singular importância estratégica, também representam um dilema para a situação mundial. Não é a democracia que está em perigo, devido ao embate interno que muitos analistas veem como indício de uma nova guerra civil com características raciais ou identitárias. Não se trata do velho conflito entre conservadores e liberais (termo que, nos EUA, remete aos grupos considerados mais "à esquerda"), embora o Establishment esteja profundamente dividido. Poderá haver confrontos mais sérios, que remetam o processo eleitoral às instâncias judiciárias de uma forma extremada, mas eles não refletem os aspectos internos que constituem a característica fundamental do atual pleito eleitoral, por mais dramática que possa parecer a situação interna do país.

 

A realidade é que, no futuro imediato, o mundo experimentará transformações extraordinárias na história humana, de uma forma ou de outra. A pandemia de Covid-19, que paralisou o mundo neste fatídico ano de 2020, evidenciou e agravou sobremaneira os problemas de desigualdade econômica e social que levaram grande parte da população humana a níveis de pobreza extrema, enquanto os grandes interesses econômicos e financeiros acentuaram o inusitado acúmulo de riquezas de que têm desfrutado nas últimas décadas, promovendo um aumento da desigualdade e das injustiças sociais que clama aos céus.

 

Nos EUA, um momento que poderia ser relativamente comparado  ao atual é o do assassinato do presidente Jonh F. Kennedy, em 22 de novembro de 1963, um autêntico golpe de estado "American style". Este trágico acontecimento assinalou  a consolidação do domínio hegemônico na política estadunidense do chamado "complexo industrial-militar", assim batizado pelo antecessor de Kennedy, Dwight D. Eisenhower, com uma agenda que estendeu a Guerra Fria por quase três décadas a mais e pavimentou o caminho para a hegemonia financeira de Wall Street, com a destruição do sistema Breton Woods em 1971, pelas mãos do presidente Richard Nixon.

 

Esses eventos criaram as condições para a criação de uma série de bolhas financeiras impostas não só à própria economia estadunidense, mas a virtualmente todo o planeta, processo que culminou na atual "globalização financeira". Esta, por sua vez, vive claramente os seus estertores, devido à impossibilidade de sustentação dos colossais volumes de dívidas nacionais e privadas, seja pela capacidade física das economias nacionais ou por mirabolantes manobras financeiras de injeções de dinheiro "criado do nada" no sistema financeiro (as famigeradas "facilitações qualitativas"), como as realizadas em 2008 para evitar o colapso do sistema financeiro "globalizado". Mecanismos que funcionam como injeções de drogas para sustentar a "adicção" crescente do sistema financeiro com as transações especulativas desconectadas da economia real, artifícios possibilitados apenas pela posição privilegiada do dólar estadunidense como moeda de referência mundial.

 

Sob outras condições, o enorme poder militar hegemônico dos Estados Unidos - na verdade, a garantia última do dólar - poderia impor um sistema compulsório de aceitação de uma ordem semelhante à da Alemanha de Weimar, na década de 1920, fruto da imposição das potências vitoriosas da Primeira Guerra Mundial, sob Taís condições de austeridade que levaram aquela nação ao nazismo e à Segunda Guerra Mundial.

 

Nós círculos mais altos do poder hegemônico global, esse tipo de alucinação radical pode estar sendo considerada,  mas é aqui que entram em cena as peculiaridades do atual momento histórico. Nos próximos anos, os Estados Unidos tendem a perder para a China a condição de maior economia do mundo. E, em termos estratégicos e tecnológicos também já não têm condições de impor uma supremacia militar a potências como a Rússia e a China.

 

Isso significa que os dias da hegemonia estadunidense estão contados, sem que isto signifique o surgimento de um novo poder hegemônico global, em termos econômicos ou militares. E é aí que reside a característica fundamental do embate eleitoral de novembro próximo: de que forma os Estados Unidos enfrentarão essa realidade? De que forma essa, sem dúvida, grande nação se inserirá no contexto de uma nova ordem mundial cooperativa, na qual a igualdade do direito das nações ao pleno desenvolvimento econômico e social deve ser o imperativo da coexistência global?

 

Quanto aos dois lados da disputa pela Casa Branca, o presidente Donald Trump, apesar de crítico da descaracterização econômica estadunidense e do envolvimento permanente do país em conflitos externos, não deixa de ser um representante do "excepcionalismo" estadunidense, que está na raiz dos seus embates  crescentes com a China, a Rússia e o Irã.

 

Por sua vez, o ex-vice-presidente Joe Biden e a senadora Kamala Harris, a despeito da "torcida" despertada entre setores ditos progressistas internos e externos, que não conseguem enxergar além das agendas identitárias, estão alinhados com a visão neomalthusiana da "Grande Retomada" proposta pelas elites econômicas globais reunidas no Fórum Econômico Mundial, sem que haja, ademais, qualquer indicação de que se disponham a contrariar a orientação belicista favorecida pelo Establishment. Ou seja, as diferenças com Trump são menos de estilo do que de conteúdo.

 

E devemos ter claro que essa característica do momento histórico é válida globalmente e abre uma questão adicional: como pode ser aplicada à  situação atual a chamada "armadilha de Tucídides"? O conceito, como se sabe, foi formulado em 2015 pelo cientista político estadunidense Graham Allisson, para explicar a dinâmica histórica de confronto entre uma potência hegemônica em declínio e uma potência ascendente, tomando como exemplo o embate entre Atenas e Esparta na Guerra do Peloponeso, descrito pelo historiador grego.

 

É evidente que, devido aos arsenais nucleares, um confronto dessa natureza só poderia levar à destruição da civilização. Por isso, é melhor pensar que a "armadilha de Tucídides" não se aplica mais à história humana - pelo menos, se humanos estiverem conduzindo o processo.

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