Darcy Ribeiro e a invenção do povo brasileiro

09/05/2020 11:08 - Blog do Eduardo Bomfim
Por Rafaela Souza
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Nós, brasileiros (…) somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi um crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro.

         “(…) Nenhum povo vive sem uma teoria de si mesmo”. Com esta frase, o antropólogo, professor, político e um dos maiores pensadores da identidade nacional brasileira, Darcy Ribeiro, exprime a razão de ser de seu último livro publicado – O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil – no qual trabalhou por mais de 30 anos. Em 1995, não obstante as recomendações médicas, deu-se alta da Unidade de Terapia Intensiva e refugiou-se em Maricá a fim de garantir uma versão final para a obra em que investira uma vida de pesquisas documentais e etnográficas. Sobre ombros de gigantes como Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro teorizou acerca da formação do que designou macroetnia brasileira. Um “povo novo”, uma vez que surge como uma etnia nacional diferenciada culturalmente das suas matrizes originárias. Um povo que é produto da fusão e transfiguração de culturas milenares num contexto socioeconômico marcado por acentuadas desigualdades sociais.

A mestiçagem é um ponto essencial da teoria de Darcy Ribeiro – “o produto verdadeiro da obra colonial de Portugal”, que plasmou um povo-nação que “se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino”. Cumpre apontar, no entanto, que Darcy não compreende a miscigenação como um processo de pacificação da sociedade ou harmonização das classes sociais. Pelo contrário, o autor evidencia a violência direta, sexual e estrutural do processo de miscigenação conduzido por meio da subjugação da massa de indivíduos constrangidos, depreciados e desumanizados.

A desindianização dos indígenas, desafricanização dos negros e deseuropeização dos portugueses, cada vez mais evidente nos processos de transfiguração que deram origem a povo novo, foi acompanhada por um modo social de concentração de terras e regime de trabalho escravo inseridos em uma economia recorrentemente desenhada para servir aos mercados externos como fornecedora de produtos primários em um constante déficit comercial que favorecia o patronato e o patriciado local enquanto reforçava as condições miseráveis da maioria da população.

A obra está organizada em cinco capítulos que, à medida em que se desdobram, tornam a nossa história mais inteligível. Os capítulos são desenvolvidos em torno de três eixos elementares relacionados: a análise da gestação étnica do Brasil que deu origem aos núcleos originais, que, multiplicados, deram origem ao povo brasileiro; o estudo das linhas de diversificação que plasmaram as particularidades culturais regionais; e a crítica ao sistema institucional – notadamente a propriedade privada e o regime de trabalho – no âmbito do qual o povo se desenvolveu, passando por diversos processos de transfiguração.

O ponto de partida do autor é, naturalmente, uma reflexão acerca da defrontação de culturas radicalmente distintas – a lusitana e a indígena. A expansão marítima portuguesa – primazia viabilizada por fatores como a centralização do poder no contexto de formação dos Estados modernos europeus e o desenvolvimento de tecnologias de navegação que remontam aos conhecimentos herdados dos árabes e dos judeus – culminou com a chegada destes à “Ilha Brasil”, território cuja costa era habitada por índios da matriz Tupi há pelo menos um século.

O conflito deu-se em diferentes âmbitos: o biótico – guerra bacteriológica consequente das doenças trazidas pelos brancos para as quais os índios não tinham imunidade, acarretando uma verdadeira dizimação; o ecológico – evidenciado pelas disputas territoriais; o econômico e social – a partir da escravização do índio e mercantilização das relações de produção que articularam a América ao Velho Mundo como provedora de gêneros exóticos, cativos e ouro; e no cultural – na confrontação de uma sociedade classista, cristã, baseada em um sistema produtivo voltado para a acumulação com uma sociedade silvícola, organizada de forma horizontal, a partir de valores como intercâmbio e solidariedade e cujas relações interpessoais se estabeleciam por meio da prática do cunhadismo.

A dominação portuguesa se deu por meio da guerra genocida e etnocida protagonizada pela empresa colonial e pelas missões jesuíticas. Cumpre apontar que tais instituições tinham projetos diferentes para os povos nativos – enquanto os jesuítas confinavam os indígenas a fim de convertê-los ao cristianismo enquanto utilizavam sua mão de obra compulsória para manutenção das missões e produção de gêneros alimentícios variados, a empresa colonial apresava os índios e submetia-os a um sistema de escravidão caracterizado pelo uso da força de trabalho até a exaustão.

Apesar de a Coroa manifestar-se contrária à escravização dos indígenas (endossando o caráter ibérico salvacionista de evangelização universal presente nos Tratados de Francisco de Vitória, Padre Nóbrega e, posteriormente, Padre Antônio Vieira), a guerra contra tribos “hostis” era legítima e comum. Regularmente, as reduções das missões acabavam servindo como fonte facilitada de mão de obra indígena para a empresa colonial. Cumpre apontar que os povoadores dispunham de relativa autonomia, tendo em vista as limitações da vigilância reinol. Invasores europeus, como os franceses e os holandeses, assim como os portugueses, se aproveitaram da instituição do cunhadismo – nesse caso caracterizado pela poligamia do homem branco com as índias – para se integrarem aos índios, explorarem sua mão de obra e suas destrezas guerreiras no projeto de ocupação dos territórios. Por vezes, os índios se uniam aos europeus a fim de opor-se a tribos e colonizadores inimigos – como foi o caso da aliança entre os franceses e os Tamoios durante a Confederação dos Tamoios (1563-1567).

O cunhadismo foi fundamental para a colonização – tendo em vista que os portugueses eram uma minoria gritante. Foi também fundamental para o processo de mestiçagem do primeiro núcleo de brasileiros – os mamelucos. Filhos de homens europeus com mulheres indígenas, os mamelucos cresciam sob um processo de desenvolvimento cultural diferente das matrizes originais. Não se reconheciam indígenas e não eram reconhecidos como portugueses – eram algo novo. O protobrasileiro – primeiro brasileiro consciente de si – em busca de uma identidade própria. Falava língua de matriz tupi, rezava orações cristãs.

A fim de preservar interesses ameaçados pelo cunhadismo generalizado, defender o território das empreitadas estrangeiras e transformar o Brasil em uma colônia produtiva, em 1532 a Coroa portuguesa pôs em execução o regime das donatarias, dentre as quais Pernambuco e São Vicente foram as mais bem-sucedidas.

Investido de poderes feudais, o donatário dispunha de poder político para fundar vilas, conceder sesmarias, licenciar artesãos e comerciantes, e de poder econômico para explorar a terra, diretamente ou por meio de intermediários.

Dando continuidade à consolidação do poder da Coroa, em 1549 Tomé de Souza implantou o governo geral, na Bahia, com apoio essencial dos mamelucos de Diogo Álvares Correia – o Caramuru. A utilização da prática do cunhadismo como forma de recrutamento de mão de obra e incorporação do indígena ao sistema mercantil de produção foi progressivamente substituída pela guerra de apresamento para escravização conforme o aumento da necessidade de mão de obra. Os mamelucos, empobrecidos e em busca de um destino para si, lançariam as bandeiras para apresamento de indígenas a fim de utilizá-los como mão de obra ou vendê-los para exploração em outras atividades coloniais. As bandeiras, ainda que empreendimentos fundamentalmente privados, também tinham como objetivo a prospecção de minerais preciosos. No final do século XVII, os mamelucos paulistas descobririam ouro na região das Minas Gerais, o que conformaria um novo processo de transfiguração cultural.

A implantação dos engenhos de açúcar, sobretudo no Nordeste, fomentou a introdução de um novo componente étnico à comunidade formada majoritariamente por mamelucos – ou brasilíndios –, as mulheres e homens negros escravizados traficados da África. Surge, assim, a área cultural crioula centrada na Casa Grande e na Senzala. Os negros traficados principalmente da costa ocidental da África, eram oriundos de três principais grupos culturais – as culturas Yorubá de Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim; as culturas islamizadas do norte da Nigéria (malês/alufá); e as tribos Bantu de Angola, Congo e Moçambique. A diversidade linguística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somadas às hostilidades recíprocas que traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia nas mesmas propriedades e até mesmo nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.

A mestiçagem do homem branco com mulheres negras – marcada pela violência sexual dos senhores de engenho e capatazes – deu origem a uma população mulata. Esse núcleo crioulo, apesar de trazer consigo a ancestralidade africana, desenvolvia uma nova cultura que se fundia e se transfigurava no contexto local. No âmbito econômico, a expansão da produção açucareira vinculou os antigos núcleos extrativistas ao mercado mundial na condição de proletário externo estruturado como uma colônia mercantil escravista.

Darcy Ribeiro pontua que a brasilianidade – essa nova identidade étnico-cultural – só se fixou quando a sociedade local (luso-tupi) se enriqueceu com contribuições maciças de descendentes dos contingentes africanos já totalmente desafricanizados pela mó aculturativa da escravidão. Nas palavras do antropólogo, “esses mulatos ou eram brasileiros ou não eram nada”. Nascidos no Brasil, aprendendo português desde pequenos, não eram como os “negros boçais” recém traficados, tampouco como europeus, indígenas ou mamelucos. A necessidade de sair da ninguendade os tornara protobrasileiros por carência. Aqui reinventaram, em condições extremamente hostis e desumanas, a cosmovisão africana, seus rituais, musicalidade e culinária. O culto à Iemanjá, transfigurado pelos afro-brasileiros no Rio de Janeiro – que transferiram a data do ritual para 31 de dezembro -, é um perfeito exemplo da brasilianidade, transformando e resignificando rituais essencialmente cristãos. Apesar das atrocidades do tráfico negreiro e da senzala, os orixás vieram brilhar, singularmente, no novo mundo.  A preservação da cultura espiritual associada às crenças indígenas emprestaria à cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural – “um catolicismo popular muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãs tão perseguidas em Portugal”.

 Os negros foram responsáveis pela propagação da língua portuguesa junto aos mamelucos que falavam nheengatu – a língua geral de matriz tupi aprendida pelos jesuítas que se tornara a língua falada no Brasil até meados do século XVIII. Induzidos pela necessidade de compreender os capatazes e se comunicarem com outros escravizados oriundos de partes diferentes da África, difundiram o português. Não apenas difundiram, mas também enriqueceram a língua com uma infinidade de vocábulos africanos que, “aportuguesados”, caracterizariam profundamente o “português do Brasil”. Quando da descoberta de minerais preciosos no centro do País, pelos bandeirantes paulistas, o envio de massas de escravizados para a região das minas propagou a língua portuguesa entre os mamelucos.

A transfiguração étnica e cultural, oriunda do encontro conflitivo de portugueses, indígenas e africanos, deu origem aos primeiros núcleos de protobrasileiros: mamelucos e mulatos. Posteriormente, a chegada de imigrantes europeus – italianos, alemães, ingleses, japoneses, sírio-libaneses -, ainda que em menor grau, transfiguraria novamente os núcleos preexistentes, sobretudo na região sul do País. Dada a dimensão territorial do Brasil, as diferentes condições ecológicas e orientações da produção, esses núcleos originais deram origem a grupos regionais que, apesar da homogeneidade cultural básica, desenvolveriam características próprias das diferentes regiões. Darcy Ribeiro distingue as variantes de culturas tradicionais brasileiras em crioula, caipira, sertaneja, cabocla e gaúcha.

A cultura crioula

A cultura crioula se desenvolveu nas faixas de terras férteis do Nordeste, fundamentalmente em torno do engenho açucareiro, como exposto previamente. O sistema de fazendas – autocrático e orientado pela monocultura para exportação – caracterizava a ordenação da vida socioeconômica entre a Casa Grande e a Senzala, que coexistiam conflitivamente, enquanto se abrasileiravam. A ordem açucarocrática se implantou pela combinação de interesses pecuniários dos comerciantes que financiavam o empreendimento, dos empresários que se incumbiam diretamente da produção e da Coroa que garantia a dominação e reservava a si o monopólio da comercialização.

Marcada pelo colonialismo escravista, a cultura crioula é a expressão na conduta e nos costumes dos imperativos da economia monocultora para exportação. Tal conduta, como esperado, encontrou efetiva resistência dos negros escravizados que lutaram por sua liberdade, não apenas contra os senhores de engenho, mas contra toda a sociedade colonial unida na defesa desse sistema. A resistência assumiu diversas formas, desde a resistência no cotidiano do engenho, até as fugas para territórios ermos, onde constituíam quilombos. Palmares, o mais célebre deles, sobreviveu por quase um século, até sua destruição pela bandeira “de contrato” do mameluco paulista Domingos Jorge Velho, a serviço dos latifundiários escravocratas.

A cultura caipira

A compreensão da cultura caipira demanda um breve retorno à história dos núcleos mamelucos. Darcy Ribeiro debruça-se substancialmente na tarefa de compreender a realidade dos mamelucos paulistas e seu papel fundamental na apropriação física do Brasil por meio das expedições conhecidas como bandeiras. Inicialmente, esta empreitada consistia em uma iniciativa de violência privada que objetivava adentrar em terras desconhecidas para aprisionar indígenas. Marginalizados no processo econômico da colônia, em que quase todos estavam voltados para as lucrativas tarefas dos engenhos e dos currais de gado, os mamelucos acabaram por se especializar como homens de guerra.

Cumpre apontar que os escravizados africanos estavam concentrados nos engenhos de açúcar e consistiam em um fator de produção muito caro. A mão de obra indígena era, portanto, uma opção mais barata e acessível. Quando os bandeirantes encontraram ouro e diamante, passaram de agentes privados a agentes da Coroa. Essa, progressivamente, se tornou mais presente na região mineradora, estabelecendo formas de exação cada vez mais escorchantes. A expansão dos núcleos para o interior do Brasil, sobretudo a partir da descoberta de minérios preciosos, foi fundamental para a expansão da ocupação do território e a integração dos arquipélagos econômicos brasileiros. Nas palavras de Darcy Ribeiro, “Minas foi o nó que atou o Brasil e fez dele uma coisa só”. A criação de uma rede de intercâmbio comercial seria fundamental para consolidação de uma base econômica de unidade nacional.

O autor infere que nas zonas de mineração, a sociedade adquiriu feições peculiares como um desdobramento do tronco paulista por influência de brasileiros vindos de outras áreas – sobretudo senhores de engenhos do nordeste acompanhados pelos negros escravizados – e portugueses. A riqueza oriunda da atividade mineradora criou um núcleo cultural e intelectual relevante, cujas maiores representatividades estão na variante brasileira da cultura barroca e na articulação ideológica da Inconfidência Mineira.

Com a decadência da mineração, toda região submergiu a uma economia de pobreza, acompanhada de regressão cultural. A economia voltou-se substancialmente para um modelo autárquico de subsistência, após a fracassada empreitada de industrialização, inviabilizada pela Coroa. Mineradores e negociantes transformaram-se em fazendeiros e empregados livres fizeram-se posseiros. Citadinos ruralizados espalharam-se pela região, ocupando terras para moradia e cultivo, fazendo-se roceiros de lavouras de subsistência, criadores de gados e porcos. Era a Minas Gerais da decadência, marcada por um forte conservadorismo. Da mesma maneira, a região centro-sul entra em estagnação, mergulhando numa cultura de pobreza que retoma as formas de vida arcaicas dos bandeirantes paulistas, marcada por uma população dispersa, desarticulada e voltada para a subsistência. A região, outrora marcada pelo apogeu da mineração, cristaliza-se na área cultural caipira, caracterizada por um novo modo de vida rural, mais autárquica do que mercantil, organizada em bairros em que prevalece a ajuda mútua entre as famílias – cuja socialização e formas de entretenimento estão centradas nas atividades religiosas – e uma organização do trabalho que permite a intercalação com longas horas de lazer. Darcy pontua que apenas nessas ocasiões de recessão econômica, a população branca e mestiça pobre e os mulatos livres têm acesso à terra.

A liberdade incidental da existência autárquica, no entanto, dura pouco, sendo suprimida por uma nova economia de exportação e pela Lei de Terras de 1850. A penetração do Estado, marcada pelos interesses da classe oligárquica proprietária de terras, impõe a reorganização da vida caipira, submetendo as famílias ao amparo de um senhorio que impõe um novo regime de trabalho e a imprescindibilidade da lealdade política para a sobrevivência em meio ao arbítrio. A nova condição de assalariado rural implica um trabalho com horário marcado por toque e dirigido por um capataz, sendo, portanto, rejeitado pelos caipiras, uma vez que associado às humilhações do trabalho escravo.

A nova situação significa o desenraizamento do posseiro caipira com ajuda do aparato legal administrativo e político do governo. Esse processo de reordenação social foi fortemente acelerado pelo rápido crescimento da cultura agroexportadora de café que impulsionou a migração de parte dessa população para terras cada vez mais remotas, acarretando a necessidade de transposição de mão de obra de escravizados e posterior importação de mão de obra europeia, adaptada ao regime assalariado. Darcy pontua que a figura icônica do personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, reflete o profundo traumatismo cultural do caipira, “marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório do seu modo tradicional de vida (…) e produto residual e cultural do latifúndio agroexportador”.

A cultura sertaneja

A empresa açucareira prescindia de economias auxiliares à produção, entre elas, a pecuária, cuja expansão para o sertão deu origem ao núcleo cultural sertanejo. Aos poucos, a criação de gado foi se afastando dos engenhos e os pastos foram ocupando os sertões do nordeste, constituindo uma economia cada vez mais importante, que atraía mestiços e brancos pobres para o trabalho de vaqueiro nas fazendas, tendo em vista as melhores condições em comparação com ao trabalho nos engenhos – o fenômeno explica a predominância do “fenótipo brancóide de base indígena” no sertão nordestino.

O regime de trabalho no pastoreio não se funda, portanto, na escravidão, mas num sistema peculiar em que o soldo se pagava em fornecimento de gêneros de manutenção. É nesse contexto que se constitui a cultura sertaneja, “marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo”.

As terras, que pertenciam à Coroa portuguesa, eram concedidas em sesmarias, inicialmente aos próprios senhores de engenho que foram se tornando sesmeiros na orla do sertão, criando o gado que consumiam. Posteriormente essa atividade se tornou especialização de criadores que vieram a ser “os maiores detentores de latifúndio no Brasil”. A relação entre o senhor e o vaqueiro era extremamente hierarquizada e o grande fluxo de brancos e mestiços para os sertões dispensava a transposição de mão de obra escrava. Ao contrário do engenho, a atividade pastoril não requisitava uma grande quantidade de mão de obra, o que acarretou, posteriormente, o crescente fluxo migratório para outras regiões.

Os sertões se fizeram um vasto reservatório de força de trabalho barata. A pequena capacidade de absorção de mão de obra, condição de miserabilidade e a dificuldade de acesso a terras num contexto profundamente marcado pelo latifúndio pastoril também acarretou o desenvolvimento do banditismo, representado na figura do cangaceiro – que é fruto do próprio sistema senhorial do latifúndio pastoril, uma vez que se espelha na figura dos jagunços a serviço dos coronéis.

Os núcleos humanos dos sertões ficavam muito dispersos uns dos outros, mas havia constante cooperação entre os vaqueiros, mormente para a atividade de apartar o gado. Essa cooperação deu origem às vaquejadas, originalmente prélios de habilidades entre vaqueiros que se transformaram em festas regionais. O culto aos santos padroeiros e as festividades do calendário religioso proporcionavam ocasiões regulares de convívio entre as famílias de vaqueiros.

A religiosidade sertaneja tem a característica de um messianismo fanático que reflete sua predisposição ao sacrifício e à violência, além de valorizar o culto à honra pessoal, ao brio e a fidelidade às suas chefaturas. Esses traços peculiares ensejaram, por vezes, o desenvolvimento de formas anômicas de conduta que envolveram multidões, criando problemas sociais de enorme gravidade, cujas principais formas de expressão são o cangaço e o fanatismo religioso. Ambos são resultados da miséria, mas conformados pela singularidade do mundo cultural. Darcy pontua que o fanatismo religioso e o cangaço têm muitas raízes em comum. Ambos são expressões da penúria e do atraso que, incapazes de se manifestar em formas mais altas de consciência e de luta, conduziram massas desesperadas ao descaminho da violência e do misticismo militante. Os episódios de Pedra Bonita e Canudos são as maiores expressões desse messianismo e manifestam a esperança no surgimento de um salvador da pobreza.

A memória de Canudos, perpetuada nas tradições orais das populações sertanejas, inundou a memória coletiva com episódios de resistência e luta e a possibilidade de transformação da ordem social, sem fazendeiros e autoridades. Diante das transformações da organização política nacional e do enfraquecimento relativo da força do coronelato, o sertanejo foi adquirindo, gradativamente, consciência social e transformando suas estratégias de resistência.

A cultura cabocla

Na Amazônia brasileira constituiu-se o núcleo cultural regional caboclo, organizado em torno da empresa extrativista florestal, cujo ciclo econômico vigorou enquanto se manteve o monopólio da produção mundial da borracha. Os protagonistas deste empreendimento foram alguns lusitanos e muitos neobrasileiros mestiços oriundos das primeiras “células-Brasil”. As primeiras fortificações da Amazônia foram construídas por portugueses para expulsar invasores franceses, que acabaram migrando para o que hoje é a cidade de Caiena. Quando os portugueses compreenderam o valor das drogas da mata,capazes de substituir as especiarias trazidas das Índias, iniciaram um esforço para racionalizar um novo negócio que tinha como principal fator de produção a mão de obra indígena escravizada. Considerando que as drogas estavam espalhadas pela mata, a estratégia para escravização consistiu na subjugação de aldeias inteiras e aprisionamento de mulheres e crianças para garantir que os homens indígenas retornariam com os produtos. Os homens brancos esposavam e violentavam mulheres indígenas capturadas e confinadas na região, determinando o caráter étnico da nova população. Inevitavelmente, a estratégia perversa desencadeou diversas guerras entre os indígenas e os colonizadores. Um posterior acordo entre missionários e colonizadores facilitou o apresamento e recrutamento de mão de obra compulsória, por meio do estabelecimento de diversas reduções jesuíticas onde os indígenas eram confinados.

A escravização e confinamento nas reduções jesuíticas ensejou o convívio entre indígenas de matrizes culturais diferentes resultando na homogeneização linguística e no enquadramento cultural compulsório do indígena no corpo de crenças e no modo de vida de seus cativadores.

A língua geral – de tronco tupi – foi, consequentemente, difundida entre as populações aborígenes da Amazônia, que falavam línguas diferentes. No campo cultural religioso, o contexto das reduções deixou o legado de uma religiosidade folclórica e pouco ortodoxa que resultou em uma crença popular de colcha de retalhos, “fundada no sincretismo da pajelança indígena com um vago culto de santos e datas do calendário católico”. Enquanto população nova que se transfigurava, carregava consigo fortes traços do modo de vida indígena, tanto no que concerne aos conhecimentos acerca da sobrevivência na floresta, como nos seus modos de dormir, se alimentar, lavrar a terra e compreender os fenômenos cotidianos. Algumas famílias dos Açores também foram enviadas para região a fim de compelir a ocupação estrangeira. Esses fundaram estabelecimentos agrícolas de gado que enriqueceram a economia regional.

A expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal fortaleceu a camada oligárquica da sociedade cabocla que se apropriou de suas fazendas, rebanhos e lavouras. Nesse período, a Coroa portuguesa, empenhada na ocupação da Amazônia, fez grandes investimentos na área, custeados pelo ouro de Minas Gerais, construindo uma rede de cidades urbanizadas e dotadas de serviços públicos. O decaimento da atividade extrativista implicou o início de uma economia agrícola de gêneros tropicais que vicejou durante a crise no abastecimento mundial de arroz e algodão, diante das guerras de independência das treze colônias norte-americanas e das guerras napoleônicas. O crescimento dessas produções acarretou a transposição de mão de obra de negros escravizados para a região.

A ordem repressiva e a situação de miséria desencadearam dois movimentos insurrecionais, no século XIX, que convulsionaram toda a Amazônia. A Cabanagem do Pará e da Amazônia (1834-1840) sublevou as camadas rurais e urbanas, adotando o caráter de uma revolução republicana e separatista fundamentada em questões classistas, mas também étnicas – uma vez que reunia os cabanos (caboclos que não eram índios, nem lusitanos e tinham um modo de vida distinto) contra as camadas oligárquicas predominantemente brancas. A outra insurreição das populações do norte foi a Balaiada (1838-1841). Os balaios eram rebeldes da massa negra concentrada no Maranhão para produzir algodão, os quais, deculturados e desafricanizados, lutavam, assim como faziam os quilombos, por uma ruptura da ordem social.

A chegada de contingentes de diversas outras partes do Brasil e do mundo, diante da valorização da borracha no mercado mundial, acarretou a substituição do nheengatu pelo português. No entanto, os caboclos mantiveram a consciência de sua identidade diferenciada e seu modo de vida de povo da floresta. O processo histórico resultou em três conjuntos de populações na Amazônia:  os índios tribais refugiados nas altas cabeceiras, lutando contra os invasores; a população urbanizada, bastante heterogênea, falando predominantemente a língua portuguesa e operando como base de sustentação da ordem colonial; e os índios genéricos, oriundos das missões, destribalizados, empobrecidos, só comparáveis aos mamelucos paulistas.

O Brasil Sulino

Por fim, Darcy Ribeiro nos apresenta ao Brasil Sulino dos gaúchos, matutos e gringos. A expansão dos antigos paulistas acarretou a ocupação da região sulina de prévia dominação espanhola, o que, posteriormente, permitiu sua incorporação ao Brasil.

Ao contrário das outras áreas conformadas pelos paulistas, na região sulina surgiram modos de vida bastante diferenciados. A região é marcada pela heterogeneidade cultural que abarca os matutos, de origem açoriana que ocupam a faixa litorânea do paraná para o sul e dedicam-se à lavoura; os representantes atuais dos antigos gaúchos da zona de campo da fronteira rio-platense e dos bolsões pastoris de Santa Catarina e Paraná, cujo sistema produtivo é o pastoreio; e os gringos-brasileiros descendentes de imigrantes europeus que formam uma ilha na zona central, avançando sobre as duas outras áreas e dedicam-se à produção em pequenas propriedades. A coexistência e interação acabou difundindo os traços das diferentes culturas num sentido homogeneizador e este processo ainda está em andamento, especialmente no que se refere às colônias alemãs, italianas e polonesas.

A presença portuguesa inicia-se com a expansão dos mamelucos paulistas para a região sul do País por meio das bandeias de apresamento de indígenas. A ampla presença de jesuítas espanhóis e seus projetos missionários atraía os mamelucos pela facilidade de captura desses indígenas destribalizados e condicionados para o trabalho disciplinado. A presença extensiva do gado, levado pelos espanhóis, acabou direcionando a principal atividade econômica a que se destinariam esses primeiros gaúchos da região. Ao contrário dos sertanejos que, desde o princípio vivenciaram uma cultura marcada pela lógica latifundiária, os gaúchos estavam inseridos em uma dinâmica diferente. A posterior expulsão da Companhia de Jesus acarretou a apropriação desses vastos campos por fazendeiros. Esses primeiros gaúchos, oriundos do processo deculturativo das missões, passaram a servir de mão de obra para exploração mercantil das vacarias.

 Apesar da relevância da expansão das bandeiras para ocupação do território, o motor essencial da formação do Brasil sulino foi a empresa colonial portuguesa conduzida, desde muito cedo, com o propósito explícito de levar sua hegemonia até o Rio da Prata. Esse propósito corporificou-se com a instalação da Colônia do Sacramento no Rio da Prata, em 1680. A atividade mineradora foi fundamental para atrair esses gaúchos para a órbita lusitana como fornecedores de gado para a região das minas, promovendo a integração aos demais arquipélagos econômicos do país.

O declínio da mineração, por sua vez, levou os gaúchos a se especializarem na fabricação de charque, que não apenas valorizou os rebanhos gaúchos como também os vinculou ao mercado nordestino, amazonense e antilhano. É importante pontuar que, além da integração aos ciclos mercantis, a coroa portuguesa empenhou-se em diversas negociações diplomáticas, ao longo de décadas, para fixação de suas fronteiras no Prata, além do envolvimento em guerras de disputa hegemônicas com a Espanha. No período pós-colonial, o poder central também teve de fazer frente e submeter pelas armas movimentos aspirantes à autonomia da região. O messianismo religioso também foi o fio condutor de insurreições locais, como o caso da Guerra do Contestado, na qual uma massa miserável reivindicava a possessão das terras que ocupavam. A histórica presença militar no Rio Grande do Sul deu à região maior poderio no conjunto da nação do que correspondia sua importância econômica, o que tornou inevitável a imposição de candidatos gaúchos ao poder central, sobretudo quando as vias institucionais foram insuficientes.

Notas Finais

Indubitavelmente a obra de Darcy Ribeiro é muito mais rica do que esta resenha seria capaz de informá-los. A leitura é fundamental para compreender características tão complexas da nossa sociedade que muitas vezes são estereotipadas e desprezadas pela mesma elite de mentalidade senhorial que, ao que parece, continua enxergando a grande massa de trabalhadores de forma desumanizada, como uma matéria prima barata, como carvão para queimar.

Darcy desnuda a desigualdade e a brutalidade que se impõem no Brasil desde sua formação e gestão de sua gente, em seu caráter de classe, raça e gênero. Para o autor, as diferenças sociais são as mais difíceis de transpor, muito embora estejam evidentemente informadas pela cor – “as classes mais baixas são escurecidas”. O racismo no Brasil é orientado pelo olhar classista e diluído numa ideologia assimilassionista, racista por natureza.

Conquanto as cicatrizes de uma sociedade marcada pelo escravagismo e pelo latifúndio extrativista sejam elementos fundamentais na compreensão do Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro dá relevo inédito às qualidades singulares oriundas desse povo novo, híbrido, forjado e enriquecido pela confluência de matrizes diversas que se converteram em uma identidade brasileira, especialmente no que concerne a seu potencial emancipatório.

A capacidade de um povo de interpretar sua própria história é uma ferramenta simbólica fundamental para direcionar sua atuação histórica, a partir da organização de valores e interesses comuns. Em que pese o potencial dos estratos dominantes para normatização e organização da sociedade, a criatividade oriunda da massa de brasileiros subjugados e conscientes da sua formação histórica é um elemento transgressor da estratificação da ordem social vigente. Por fim, cumpre ressaltar que Darcy não se atém ao modelo de modernidade constituído “de fora para dentro”, mas explora as condições de possibilidade de emancipação a partir da singularidade das experiências locais.

Todo potencial da brasilianidade, exaltado na obra de Darcy, deve subjazer o direcionamento que queremos dar ao País em mais um momento de transitividade. É nossa percepção e atuação enquanto Povo Brasileiro que ditará nossa emancipação e realização ou o retorno à condição de proletário externo a serviço do capital estrangeiro.

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