A editora Record relançou – em volume único – o livro Memórias do Cárcere do escritor alagoano Graciliano Ramos. Em que pese minhas concepções políticas serem o oposto das de Graciliano Ramos, sou um admirador profundo de sua obra.

Primeiro: a clareza do estilo. Ramos segue o que ele mesmo pregava: palavra foi feita para dizer e não para enfeitar. Ele coloca abaixo os intelectualismos e floreios desnecessários, tornando-se cirúrgico na narrativa e na busca por expressar a realidade por meio de personagens tão complexos quanto críveis, como é o caso de Vidas Secas e Angústia (esse último com muitos traços biográficos devido a função que ocupava no governo de Osman Loureiro em Alagoas).

Em minha humilde opinião, conhecer a obra de Graciliano Ramos é fundamental. Trata-se de um escritor que, mesmo diante de suas convicções anticapitalistas e ateias, o que o fez flertar com o comunismo e com ideias de esquerda, nunca foi um homem de tribalismos e nunca submeteu a sua pena ao que não fossem as suas próprias visões, razão pela qual era sincero. Essa sinceridade dolorosa aflora em Memórias do Cárcere, sobretudo quando afirma ao leitor que se deixa guiar pelas memórias posteriores na exposição dos tipos ali presentes.

A obra de Ramos não deixa de soar datada, mas também não deixa de ter seus aspectos atemporais em reflexões que servem a qualquer um ao olhar para um estamento estatal e seus amplos poderes. Não por acaso, em Memórias do Cárcere diz Graciliano Ramos que se forem buscar em seus pensamentos e ideias algo que possa ser uma obra, muito provavelmente encontrarão motivos para condená-lo, denunciando assim o perigo de um Estado – seja ele qual for – começar a adotar o discurso de criminalizar ideias ou, em nome de um suposto bem, começar a fazer a censura prévia.

Estranha-me – evidentemente – Ramos não perceber isso nas ideologias com as quais, de uma forma ou de outra, acabou flertando.

Porém, isso não tira a verdade do dito: o perigo de um grupo se achar o dono do bom-senso e de determinar, por meio de um conjunto de leis, o que pode ou não ser defendido. Estaremos a um passo da “crimidéia” descrita por George Orwell em seu maravilhoso 1984.

É evidente que ideias possuem consequências, mas nem isso é motivo para a censura prévia em qualquer debate. Democracia se faz de lados e não de lado. É a existência do contraditório, do conflito no campo das ideias, do debate público, que torna pulsante uma democracia. No dia em que não houver esse conflito, é porque a democracia foi embora.

O discurso hegemônico demais é, portanto, uma coisa perigosa. Em pouco tempo, surgem os que se encantam por si mesmo, pela sua própria suposta genialidade e pelas falsas certezas de uma ideologia que oferece uma cosmovisão que despreza a complexidade humana. Aliás, em Conflito de Visões, o americano Thomas Sowell mostra isso muito bem.

Memórias do Cárcere é, dessa forma, um verdadeiro relato de repressão injustificada que, em alguns momentos, nos lembra O Processo de Franz Kafka, mesmo que sejam estilos tão diferentes. Por isso, reitero, a indicação da leitura dessa obra.

Em um ponto de seu escrito, Ramos também alerta para um fato interessante que é uma crítica ao, em tese, próprio grupo que pertence: denunciar os considerados inimigos com mentiras, calúnias e difamações é um descompromisso com a verdade que tem um preço: o descrédito do denunciante. Assim, quando esse precisar falar a verdade ninguém mais acreditará nele.

O recado de Ramos serve muito para que a imprensa – de forma geral, independente de posições previamente assumidas – faça uma autocrítica. Negar que a credibilidade da imprensa se encontra abalada é negar que há um elefante no meio da sala. Antes de qualquer reação histérica, é preciso que avaliemos os nossos próprios atos. Então, dessa forma, sabermos se as críticas e análises que fazemos se dão na busca pela verdade ou presas a algum ranço ideológico que caracteriza o objeto da análise como um inimigo a ser abatido.

Isso vale para todos que se colocam no debate público e vale a todo momento. Graciliano Ramos travava essa autocrítica, inclusive, quando sob a ameaça da demissão do cargo público que ocupava em função de uma perseguição política. Assim, analisava as posições – por exemplo – do governador da época, Osman Loureiro, e dos colegas de trabalho. Dessa forma, batia no Estado burocrático. Concordar com discordar de Ramos em suas exposições é outra história. O leitor é livre para isso e tem que ser…

Afinal, muitos temem a discordância com grandes medalhões. Porém, é preciso entender a importância do ceticismo ao longo da História. Vejamos A República de Platão. No Livro II dessa obra, Sócrates – por meio dos diálogos platônicos – ousa criticar a forma como as obras de Homero eram usadas para a construção de um imaginário de Justiça e de relação com as divindades e moralidades na educação das crianças. Naquele momento, quem era Sócrates? Ninguém. Apenas um andarilho a pensar e interrogar o que estava posto por sofistas e grandes intelectuais. Quem era Homero? O grande e consagrado poeta já com extrema influência no pensamento da época.

As indagações de Sócrates – por meio de um método de investigação filosófica – associa a moralidade à divindade como nunca antes foi feito, sendo a base da filosofia de Platão e mais tarde de Santo Agostinho para definir o Bem vindo de Deus e colocar o Mal como a ausência de Deus, pois Sócrates – ao entender a divindade como uma perfeição – colocava que as reflexões a partir de Homero não poderiam fazer sentido, pois aos deuses não caberiam tantas mudanças sobre seus próprios pensamentos e ações uma vez que eram o mais elevado.

Daí a maiêutica ser um parto e, como tal, doloroso, pois nos leva a investigar nossa própria consciência para fazer nascer um pensamento que se aproxime da verdade, que busque a verdade e não somente o orgulho de uma opinião própria como se opiniões fossem equivalentes apenas por serem pessoais. Afinal, como expõe o americano Daniel Patrick Moyniham: você tem direito as suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos.

Percebam, caro (a) leitor (a), como a literatura nos leva por caminhos maravilhosos que nos permitem criar o diálogo entre obras e entre escritores que sequer se encontraram na cronologia do tempo, mas conseguem chegar a nós em uma mesma prateleira na estante de nossas casas ou das livrarias.

É ela que nos salva em períodos nublados, onde todo mundo busca viver em voz alta e dar pitacos de todas as formas, arrotando certezas, mas – muitas vezes – sem o prévio conhecimento da história, dos fatos como eles são, mas simplesmente apoiado em impressões primárias ou interesses não confessados nas linhas, mas presentes em entrelinhas.

Diante de mares sombrios, não abandonem as suas consciências as correntezas criadas pelo famoso “espírito do tempo”, nem abram mão da potencial individualidade na produção de questionamentos ao posto e busca por respostas que levem às conclusões possíveis quando se ama e se quer a verdade. Isso é mais que política. É a salvação da alma, seja em sentido metafórico (para os que não possuem fé) ou no sentido religioso para os que, como eu, são cristãos.

Da primeira vez que li Memórias do Cárcere, aprendi a sofrer com a angústia de um escritor, independente do conjunto de ideias que ele professa, mas por empatia mesmo. Empatia com um homem comum que, buscando sua sobrevivência no meio de uma crise conjugal, se viu preso e teve, vejam só, como fortaleza, ali naquele momento, a serenidade de sua esposa diante dos acontecimentos que se desdobraram. A compaixão muito ensina, pois nos faz enxergar o humano e nos colocar no lugar do outro, independente de quem seja o outro.

Por sinal, na literatura universal, ninguém faz isso melhor que os personagens de Fiodor Dostoievski. Em Memórias do Cárcere também aprendi o quanto algumas experiências nos moldam, mas não nos roubam a escolha do saber agir diante delas, o que igualmente senti ao ler os relatos de Vicktor Frankl ao sobreviver ao nefasto campo de concentração nazista. Frankl nos ensina a buscar um sentido quando não há mais sentido em canto algum. Ele me lembrou uma frase profunda do compositor brasileiro Renato Russo: “podem até maltratar meu coração, mas meu espírito ninguém vai conseguir quebrar”.

É, a literatura nos faz mais forte.

Não passem pela vida sem essas lentes literárias que ampliam e muito a forma como vemos o mundo. Como nos lembra Goethe, é urgente ter paciência. Então, nada mais belo do que – em nosso ócio – cultivarmos o jardim das experiências literárias. Assim saberemos diferenciar a potência da efêmera flor da natureza...da beleza inodora das flores de plástico que tentam imitar o que realmente é belo, mas no fim são falsas...