O escritor Lucas Berlanza se propôs um imenso desafio: resgatar a memória do político, escritor e intelectual Carlos Lacerda, que possui uma biografia polêmica.

Lacerda é um nome de relevância em diversos períodos da história do nosso país. É impossível estudar a política recente brasileira e não se deparar com o nome desse político em diversos momentos, seja na época do getulismo ou no período militar.

Berlanza cumpre com maestria a tarefa a qual se propôs e acaba por mostrar – como diz o título de sua obra – “A Virtude da Polêmica”. Entrevistei, com exclusividade, o autor dessa biografia que ocupa lugar de destaque nas prateleiras das livrarias do Brasil.

Confira a entrevista na íntegra:

Para iniciar, o que o levou a escrever sobre Carlos Lacerda?

Fui apresentado ao personagem nas narrativas dos materiais didáticos como uma figura menos destacada, cuja maior presença no cenário político nacional se deveu ao atentado de Toneleros e ao endosso à ruptura de 1964. Em geral, ele era apresentado como uma espécie de vilão, mas desde pequeno, por diversas razões, eu era avesso ao comunismo, às ideias da extrema esquerda e também não conseguia entender a exaltação a um ditador como Getúlio Vargas. Costumo dizer que a origem exata do recrudescimento de meu interesse por Lacerda e pelo lacerdismo não é tão clara na minha memória, mas fatalmente os motivos passam por essa indisposição para com seus oponentes históricos. Se eu sempre fui contra os principais inimigos de Lacerda, natural concluir que seu adversário mais destacado e virulento não fosse um sujeito tão ruim quanto o pintam… Daí a me tornar um grande fã e entusiasta da biografia cinematográfica e das ideias de Lacerda, foi um pulo. No entanto, apenas decidi escrever essa biografia intelectual depois de já ter lido bastante material da lavra de Lacerda e sobre ele sem nenhuma intenção prévia de produzi-la, por entender que o momento era propício para existir no mercado editorial uma obra que, conquanto intelectualmente honesta, fosse francamente favorável e respeitosa ao legado do personagem, sem nenhuma vergonha disso.

Muitos que falam sobre Carlos Lacerda o colocam como o presidente que não tivemos em função das circunstâncias históricas. É possível avaliar quem seria Lacerda para o Brasil se o período militar não tivesse durado tanto?

É possível avaliar, muito embora não seja possível ter certeza absoluta, porque a História tem muitas variáveis. Dependeria, por exemplo, do que momento em que essa ascensão se daria. Se Carlos Lacerda chegasse ao poder na malfadada eleição de 1965 que não houve, quando sua popularidade no país e o desgaste do janguismo e das forças mais radicais do varguismo era significativo, com certeza lideraria com tanta ou mais competência a repressão aos comunistas terroristas organizados e implementaria ao menos parte de sua agenda descentralizadora, da melhor cepa do udenismo, juntamente com o empenho extraordinário que demonstrou como governador da Guanabara sendo exportado para o âmbito federal. Poderia ter criado uma tradição política liberal conservadora partidária, de inspiração lacerdista, tão sólida quanto a tradição varguista, a brizolista e outras que fizeram escola no Brasil. Se assumisse depois, como resultado da coalizão de forças da Frente Ampla, talvez precisasse fazer concessões a seus antigos inimigos, em função do apoio que obteve deles para lutar pela democracia. No fim dos anos 70, ele dizia que seu outrora desafeto Roberto Campos teria sido seu ministro, mas, fosse ele ou não, certamente Lacerda adotaria uma linha mais liberal e menos estatizante que a maioria de seus contemporâneos – e, com certeza, que os presidentes militares subsequentes.

Qual a importância de revisitar a biografia de Lacerda? Quais lições podemos tirar desse ato para o Brasil atual?

Quando se procura estabelecer uma direita no Brasil, um movimento liberal conservador mais sólido, importa buscar suas bases nacionais, suas inspirações históricas no próprio país; nunca ouvi falar de uma direita em lugar algum que tenha tido sucesso sem ser patriótica, na melhor acepção da palavra. Lacerda representa o ícone que, com a maior penetração social alcançada antes dos últimos tempos, simbolizou e galvanizou muitas das bandeiras que os liberais e conservadores de hoje passaram a defender. É um líder que oferece exemplos de excelência administrativa e consistência teórica, tendo uma formação liberal-democrática expressiva e defendendo o legado da civilização cristã ocidental. Ao mesmo tempo, oferece algo que está muito em falta: o modelo de uma liderança com senso de propósito, voltada à busca pela grandeza e à rejeição ao medíocre.

É comum se associar Lacerda ao apoio ao regime militar de 1964. No entanto, há embates nessa trajetória. Quais os erros mais comuns – em sua visão – se comete quando se tenta relembrar quem foi esse homem de nossa História?

O erro mais comum é reduzir sua trajetória à de um golpista, uma espécie de gângster político, cuja única pretensão era chegar ao poder para satisfazer ambições mesquinhas e que mudava de opinião como quem muda de roupa, sem apresentar qualquer substância coerente em seu pensamento. Combater essa percepção é um dos principais objetivos do meu livro, que se esforça por inserir os posicionamentos mais delicados de Lacerda em seu contexto, onde eles se tornam compreensíveis, e mostrar as características autoritárias, demagógicas e nocivas de seus oponentes que conferem o inteiro significado de suas bandeiras. Para entender Lacerda devidamente, é preciso se colocar no lugar dele e entender o que era o Brasil naquele período, o que nem todos – sequer a maioria – têm a boa vontade de fazer.

É possível classificar Lacerda como um estadista? Aliás, nos falta um “Lacerda” em dias atuais?

Se definirmos um estadista como alguém versado na arte de governar e que apresenta uma visão clara de país, tem um projeto evidente para os rumos que a nação deveria seguir e demonstra sua grandeza nos gestos que mobiliza para atingir esse intento, sem dúvida Lacerda pode ser classificado como um estadista. Com ainda maior certeza faz falta um Lacerda nos dias atuais, não para propor exatamente, em minúcias, as mesmas soluções, porque o país mudou, mas para fazer jus à substância das ideias que ele representava com a mesma invejável capacidade.

Como você observa a passagem de Lacerda pela ideologia comunista e o seu rompimento?

O período comunista de Lacerda se deu na juventude, tendo sido seus tios membros do Partido Comunista. É um ensaio da habilidade prodigiosa dele como orador e ativista político, embora defendendo tudo quanto seria avesso às ideias que adotaria na sua fase predominante e consagrada. O rompimento com o comunismo foi uma experiência dura e traumática, em que Lacerda pôde perceber com clareza a natureza totalitária da ideologia que sustentou e defini-la como o maior inimigo da humanidade naquela época.

Resume-se muito a figura de Lacerda ao anti-getulismo. Esse resumo é justo? O que Lacerda representou naquele período e depois?

Não. O antagonismo com o varguismo é um dos aspectos fundamentais do lacerdismo e essa é a grande clivagem político-simbólica entre os anos 40 e 60; porém, é preciso tomar cuidado para não enxergar Lacerda apenas como um destruidor, um inimigo, sem qualquer agenda propositiva. Ele é a grande liderança liberal conservadora (fundindo ideias liberais e conservadoras através do elo da democracia cristã, grande inspiração na época pelo sucesso em reerguer a Alemanha no pós-guerra) que tivemos no Brasil e uma personalidade política central nos principais acontecimentos históricos daquele tempo. No meu entendimento, é assim que ele deve ser lembrado.

Qual reflexão você faz do discurso histórico de Lacerda – em cadeia nacional – quando confrontou o presidente Jânio Quadros, que foi seu antigo aliado, pelo menos como consta nos livros de História? O que representou aquele episódio?

Representou a melhor prova de que Lacerda tinha princípios e não pagaria qualquer preço pelo poder. Lacerda relata que foi convidado por Jânio e aqueles que o cercavam para dar um golpe e conquistar poderes especiais, quando o político paulista havia sido apoiado pela UDN justamente porque Lacerda e seus correligionários acreditavam que ele era a única chance de tentar emplacar as reformas necessárias ao país pelo voto, aproveitando-se da popularidade fenomenal que havia conquistado o “homem da vassourinha”. Com a queda de Jânio, Lacerda, eleito governador, perderia a relação positiva e privilegiada com o governo federal, mas pensou no país antes de tudo e não quis participar daquele engodo.

Como o senhor avalia a formação da Frente Ampla em relação à resistência ao regime militar? Um acerto? Um erro? Esse ato, afinal de contas, acabou colocando Lacerda ao lado de antigos opositores…

A Frente Ampla foi um ato de coragem de Lacerda, porque ele era o único que tinha tudo a perder. Sua atuação no período do começo do regime militar não foi isenta de erros, alguns bastante graves, mas muito mais culpados e traidores foram os integrantes do sistema político então instalado, que nitidamente sabotaram suas pretensões presidenciais e abriram caminho a uma tecnocracia autoritária que aniquilaria as lideranças civis. Era necessário reagir a isso e Lacerda não poderia se acumpliciar dos atos institucionais que se acumulavam, mas, se a doença precisava ser combatida, o remédio não podia ser facilmente entendido por seus antigos aliados. As batalhas contra JK e Jango foram cruentas demais para aquele gesto ser bem recebido e, além disso, na minha opinião, ainda que a substância do pensamento lacerdista não se tenha alterado, existem alguns retrocessos discursivos em algumas bandeiras específicas que ele passou a defender na reta final para contemplar seus novos aliados de última hora. O esforço era compreensível e o desespero, também, mas não havia muitas condições de dar certo. Não pretendo pontificar se foi um erro ou um acerto, mas foi uma tentativa virtuosa e infrutífera de um homem desesperado por achar uma solução ao que acertadamente enxergava como mais uma oportunidade perdida.